Texto «A posse do objecto raro», publicado no catálogo da exposição de Pedro Gomes, Ter, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, 2005, pp. 45-48.
Pedro Gomes faz do desenho o meio preferencial para desenvolver uma linha de trabalho assente nos paradigmas de representação visual e no estatuto codificado da imagem. Em trabalhos como os da série Habitat, usando a esferográfica e um registo de enovelados, recriou paisagens urbanas a partir de ampliações fotográficas. O processo de realização manual consistia em abstrair, reduzir e estilizar os contornos e as formas do visível para exercer desse modo a passagem da imagem da realidade ao símbolo. O resultado vinha intensificar a condição anónima e indiferenciada daquelas paisagens, e pelo recurso à sobreposição de diferentes manchas de cor e à ideia de negativo, modos de fabrico empregados na reproductibilidade mecânica, Pedro Gomes evidenciava a sua condição de imagem reproduzida.
Noutras séries, em Paraíso ou Piscinas e Montanhas, ele apresentava paisagens e ambientes desejados pelo homem contemporâneo, dando ênfase à sua representação esquemática, aos códigos simbólicos da cultura visual. Nesses trabalhos os pormenores do real concreto perdiam-se pela simplificação das formas físicas da realidade e das paisagens representadas, num tratamento que evidenciava a sua qualidade de cenários estereotipados e ironizava sobre o valor simbólico das imagens e a tendência para a sublimação idealizadora.
Seguindo os princípios de representação de anteriores trabalhos, nas obras que integravam o Projecto Calçada da Ajuda, intervenção que ocorreu num espaço familiar desabitado, Pedro Gomes mostrava desenhos murais realizados com pó e desperdícios, que colocavam o visitante perante imagens de linhas e manchas definindo num tratamento simplificado uma figura masculina no acto da masturbação. Neles conservava-se o registo estilizado já antes praticado, mas ao contrário da equivalência universal dominante nas paisagens e montanhas, demarcava-se um espaço de intimidade, privado, correspondente à expressão da identidade singular e do prazer na sua solitária singularidade.
Nos últimos trabalhos que vem desenvolvendo, Pedro Gomes centra a sua visão e reflexão no acto de coleccionar e na condição contemporânea dos objectos antigos, trabalhando a partir da apropriação da imagem de objectos e peças com alto valor simbólico: trata-se de objectos de arte decorativa a que culturalmente atribuímos o estatuto de excepção e transcendência em virtude da historicidade, da raridade, do exotismo e da sua beleza. São objectos raros de colecção, objectos puros, cuja história exige lembrança, cuidados de preservação, respeito e um lugar na memória. O facto de o objecto ter tido um proprietário célebre confere-lhe um valor acrescido.
No espaço privado estas obras de arte guardam-se como peças do património familiar, como relíquias que despoletam sentimentos de afectividade, e que conferem prestígio social aos seus detentores. No espaço do museu a sua existência é partilhada, exibem-se como testemunho da produção artística do passado, como exemplares de um estilo, de uma época, promovendo a construção de um sentimento de pertença e de identidade colectiva. Nas suas salas apresentam-se em vitrines, destituídos de funcionalidade, deixando de ser encarados como mesas, cadeiras ou candelabros para se tornarem obras de arte. Passam a ser objectos de um discurso, tornam-se peças especiais no sistema dos objectos, com um lugar destacado na respectiva série. São contemplados à distância, analisados, estudados, passam a ter uma história própria com direito a bilhete de identidade.
Motivado por estas questões, Pedro Gomes consegue instituir neste seu novo trabalho uma relação muito particular com estes objectos. Realizou uma série de desenhos a tinta da china e no Museu Nacional de Arte Antiga apresentou uma instalação que tinha como ponto de partida o verbo Ter, com uma série de trabalhos em que se apropriava dos objectos expostos para com eles estabelecer uma relação particular entre o seu próprio corpo e o domínio dos objectos. Assim intensificava a sua condição de símbolos, facto acentuado pelas técnicas e registo utilizados pelo artista nessas obras: apresentação de alto contraste, desenho límpido que isola a figura no fundo, que explora a opacidade das silhuetas negras, oferecendo uma visão padronizada de cada objecto. Não importa se são realizados em prata, porcelana, ouro.
Ao mesmo tempo que confere uma extrema legibilidade à realidade simbólica desses símbolos, por meio da configuração de uma imagem que abstractiza, avança para a padronização, distanciando-se da realidade singular de cada objecto, Pedro Gomes procura investir num outro sentido, o da proximidade que mantém com os objectos. Nos desenhos o corpo do artista toma posição, integra os objectos no mundo real, sem contudo lhes restituir o plano da função utilitária que é, a par da beleza, uma das características da artes decorativas. Pedro Gomes não expõe os gestos ditados pela função prática, reinventa um novo modo de relacionamento com eles. A partir de actos simples, em que o seu corpo está em permanente experiência com o objecto, ele projecta uma dimensão pessoal nos objectos, como se o funcional se desfizesse no subjectivo. Ou seja, intensifica o investimento passional, instaurando um domínio privado marcado pela auto-representação. Neles toma o lugar de mediador, a quem é dado, expondo impulsos primários, de relação de posse, materializar a apropriação de um objecto abstraído da sua função. Expõe a evidência da posse, consuma o desejo de ter, tornando cada peça um objecto a ser possuído. Significativa é também a existência de uma sucessão de objectos, que eleva a um grau extremo o sentimento de posse. Como é próprio da natureza de coleccionar, quando o empreendimento de possuir revela-se uma repetição de objectos, que pode não ter fim.