Texto «O caminho sem fim», publicado no catálogo da exposição de João Tabarra, No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho. Coimbra: Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 2003
Começar
O movimento é sempre centrífugo; ao princípio estamos já no meio da acção, e isto aplica-se tanto ao poema como a cada canto e episódio. – Italo Calvino[1]
Afirmar que se está no meio do caminho e não no princípio, como se esperaria neste início, representa certamente uma forma de distanciamento em relação à trajectória e estrutura que se cumprem muito linearmente a partir de um começo até um fim. Mas representa também um afastamento perante as coordenadas que normalmente usamos para traduzir o sentido de progresso no espaço e de desenvolvimento na estrutura da narrativa.
Podendo a etapa do meio ser a menos gloriosa do itinerário, porque não se associa ao entusiasmo e prova de iniciativa da parte inicial, nem à euforia que acompanha a etapa final, ela não deixa de evocar um valor próprio, captado no provérbio que diz que «no meio está a virtude». Como ponto equidistante dos pólos, ele tanto pode funcionar como uma instância de articulação entre os pontos de partida e chegada, como um local privilegiado de observação.
Todavia, no sentido de intensificar a nossa controlada situação instável, optemos por assumir uma definição peculiar de meio: não tanto um ponto de equilíbrio entre dois extremos, mas sobretudo um pólo e campo abalado por múltiplas tensões. Estamos a falar de um lugar, onde à semelhança da instalação de João Tabarra, Protecção (2003), as pedras irrompem e se interpõem ao olhar que cobre uma clareira junto a um bosque; e, mesmo, de um espaço onde os obstáculos se manifestam sem cessar e de diferentes formas (Barricades Improvisées, 2001 e Bleu, 2002). Tudo isto sem que se produza um desvio à normalidade e a passividade se instale perante as dinâmicas que oferecem ameaça e oposição (Mute Control, 2000 e Defense, trois mouvements I, II, III, 2001). Afinal todas elas são circunstâncias que fazem parte do processo e por isso mesmo se expõem como desafios a superar (This is not a drill (No pain no gain), 1999), o mesmo acontecendo com as dúvidas e interrogações que sempre surgem ao longo de qualquer caminho, tornando evidente a necessidade de aferir o sentido da acção que se exerce (série What type of contestation are we asking for?, 1997-1998) e de viver ao arrepio das afirmações consagradas, e do temor de não encontrar respostas definitivas.
Continuar sem fim
La marche, au juste, est preuve d’activation du corps, refus de la polarité, sortie de la place conquise, désir d’acession à l’ailleurs. Le marcheur fait un pari: le monde n’est pas clos mas pénétrable. – Paul Ardenne[2]
Se o próprio acto de caminhar já anuncia o impulso do corpo para a mobilidade e o desejo de avançar de um lugar a outro, deve-se dizer que a própria circunstância de permanecer a meio do caminho reforça essa expectativa de disponibilidade para percorrer distâncias de uma forma continuada. Ora, implícito nesta vontade de localização entre dois pontos opostos, poderá estar igualmente o desejo de renunciar ao sentido finalista sob o qual tendencialmente apresentamos cada discurso e construímos cada história. Até a própria história da História e do Mundo. Em obras como True Lies and Alibis – Marche Solitaire (1999) e Plus jamais la fin du monde – graffiti (1999), João Tabarra já havia submetido ao plano da crítica as afirmações que anunciavam os limites e a chegada a um tempo conclusivo e concluído. E em contraponto a esse espírito apocalíptico, ganhava expressão nas suas imagens a vontade de traçar caminho indo mais longe, de superar o determinismo e de dispor-se à construção de outros horizontes. Algo que não implicava necessariamente o ideal de edificação de um mundo novo, mas o gesto de resistência e de reconquista perante os espaços de fronteira, os locais esquecidos e marcados por todas as ausências.
No mesmo sentido, poder-se-á evocar a série de trabalhos em que Tabarra surge acompanhado da fada, e particularmente uma das suas mais recentes obras, Confissão/Construção (2003). Porque neles se assinala um possível estar no mundo total e absoluto: a salvaguarda de uma «vida» em permanência, os valores de pertença e de partilha que recusam as relações de domínio e os estados de evasão que se anunciam.
Daqui por diante
O construir como o habitar, o mesmo é dizer, estar na terra, para a experiência quotidiana do ser humano é desde sempre, como diz a língua de forma tão bela, o «habitual». – Martin Heidegger[3]
É já desde os seus primeiros trabalhos que João Tabarra convoca os recursos da ficção e da autoficção para desenvolver registos próximos de uma contra-memória colectiva, sem contudo produzir uma desvinculação face ao real. Por exemplo nas obras João Ponte Diniz “Pilha Eléctrica”, campeão de mínimos amadores boxe 1943 e Sting (1993), e Portugueses na Europa (1995), era através da presença do homem e herói comum que decorriam a encenação e a sátira de imagens simbólicas e aspectos marcantes da história do Portugal antigo e do país moderno.
Já numa obra de 1997 intitulada What type of contestation are we asking for (Paraíso), Tabarra surgia integrado num ambiente idílico marcado pela convivência pacífica entre os seres do mundo animal. O céu, povoado por animais felizes, e a sensação de quietude e felicidade contagiavam o próprio artista. O cenário era típico de um cartaz de publicidade: a mensagem era mediática e em acção estavam os mecanismos de identificação sentimental próprios da estratégia publicitária.
Perdido nos começos imemoriais, o paraíso original transformou-se hoje numa meta ideal para um qualquer final feliz. Até mesmo para o viver quotidiano do homem comum. A felicidade tornou-se a palavra de ordem dos tempos actuais, não sendo nunca sobrestimável o seu valor mercantil. A cultura da felicidade marca omnipresença no repertório da publicidade, das oficinas do entretenimento, do mundo Disney, das produtoras de Hollywood, chegando a rivalizar com a sua sucedânea, a cultura do bem-estar. A grande promessa da psicologia positiva, que vê no alcance de um prazer amplificado a satisfação garantida na cura terapêutica para a infelicidade humana.
Ora, tudo seria perfeito, não fosse o novo paraíso na terra constituir uma imagem amplamente patrocinada por um consumo de bens e sonhos que se esgota nos seus fins mais imediatistas, ou seja no próprio consumo. Resta-lhe, então, a promoção de um estado de urgência impossível de satisfazer e o contributo para um viver veloz que, absorto, nos projecta consecutivamente para o futuro.
Não surpreende por isso que, em contraponto a esta realidade, o valor da lentidão, da reflexão e da procura de pequenos pormenores e prazeres inesperados exerça um fascínio que se identifica com a plena realização humana (Maman, 1998-1999, Touch me, 1999, Assembler, 2001 e The Devil`s Brigade, 2003) e com o sentido do que é verdadeiramente essencial (Olhos nos olhos, 2003).
Recomeçar
(...) sei que todas as interpretações empobrecem o mito e o sufocam: com os mitos não podemos ter pressas; é melhor deixarmos que eles se depositem na memória, determo-nos a meditar em todos os pormenores, meditar neles sem sairmos da sua linguagem de imagens. – Italo Calvino[4]
Voltar nesta precisa altura a Italo Calvino abre certamente vias hipotéticas de regresso a um caminho já traçado, em concordância com a dimensão ritual associada à concepção cíclica do tempo mitológico. Trata-se de abrir caminho à perspectiva de abordagem presente em Olhos nos Olhos (2003), uma peça centrada na ocorrência da repetição e na inteira disponibilidade para encetar a perseguição perpétua em torno de uma mesma imagem, a de Che Guevara. O encontro com o olhar directo da figura do herói faz-se sempre em busca de um sinal. Há um «travelling» para seguir, cumprir o ritmo lento da trajectória que se completa sobre o rosto do guerrilheiro heróico, todavia sem que o esperado ocorra. O seu olhar não se deixa envolver e capturar. Não se revela nem dilui na nossa direcção, mas persistimos como quem não desiste perante a hipótese de dar continuidade à procura e segue o impulso forte para a revelação, esperando que o sinal da mudança ocorra e algo mude. Mas isso não acontece. A sequência deixa-nos numa procura sem fim, envolvidos num pleno movimento de eterno retorno. É irremediável, o horizonte infinito para onde o seu olhar se dirige é mais forte. A recusa é total e, quase pode dizer-se, emblemática. É uma atitude inerente ao comportamento do herói, como se fosse esse o seu invisível escudo de defesa, ontem como hoje. Sobretudo hoje, quando assistimos à crescente banalização da imagem do “último dos românticos”, à profanação do carácter sagrado do mito e à progressiva caricaturização da sua identidade de herói. A fotografia de Alberto Korda tornou-se uma das mais reproduzidas no mundo, não apenas investindo de um credível ícone de massas os mais variados ideais e movimentos revolucionários, mas também inspirando as artes e o mundo da moda, e mesmo toda uma indústria vocacionada para a massificação fácil do brinde. O seu rosto é amplamente estampado e reproduzido em posters, t-shirts, canecas, boinas, surgindo até como marca oficial em vasilhames de bebidas alcóolicas. Nada poderia ser mais ilustrativo do sucesso deste ícone híbrido, representativo de incompatibilidades antes impensadas e fruto de uma apropriação forçada, sem dúvida assombrada pelo original, mas ainda assim irreparável.
Fica-nos a certeza de que nada é do mesmo modo, para sempre.
Para sempre
J’aime le mot croire. En général, quand on dit “je sais”, on ne sait pas, on croit. – Marcel Duchamp[5]
Há muito que o «para sempre» deixou de fazer parte da lógica do discurso. Existe nessa afirmação algo de tão remoto que a sugestão deste vínculo e desta aliança através dos tempos mais se assemelha a uma espécie de fórmula falaciosa, vazia de rigor, uma ilusão, que apenas nos atrai a considerar a sua improbabilidade de facto e os reveses e oposição que vai enfrentando. O seu valor inabalável foi questionado em consequência do horror ao peso da certeza que domina o pensamento contemporâneo, passando a integrar a academia dos lugares-comuns e das frases feitas que Roberto Calasso afirma serem as «pedras da linguagem»[6]. Ou seja, vai sobrevivendo a título de abstracção, acalentando um princípio de fechamento, que só tem por papel acentuar a impressão de confiança e credibilidade num ambiente demasiado exposto ao movimento e à relativização.
O que fazer? Sim, o que fazer, com as verdades que já não são tão verdade, sabendo que de um lado do caminho estão as pedras e do outro as areias movediças. Escolher um dos desvios agora enunciados? Encetar a fuga abrindo caminho por terras de ninguém? Ou, ficar imóvel, recusar o movimento?
Desde logo, recusar o óbvio, os perigos e os becos sem saída inerentes a cada um dos caminhos bifurcados em que se organiza o pensamento e empenhar-se na construção de um itinerário sem refúgios, integrando o desafio. Como seja o de atribuir leveza ao peso das pedras, ou o de dar consistência à mobilidade das areias. Nunca deixando de assumir o projecto que, ganha forma, que se vai fazendo à margem de limites, de consensos, das certezas dadas e das máximas, seguros das perspectivas e das certezas pessoais que se foram construindo. Não descurando a responsabilidade ética da opção, nem desprezando a inteira necessidade de acreditar. É que na base do acreditar não está uma profissão de fé dogmática, mas a consciência de que para trás fica a ideia de que a longa caminhada se faz sem causas e sem valores a defender.
Footnotes
- ^ Italo Calvino, Porquê ler os Clássicos?. Lisboa: Teorema, 1991, p. 63.
- ^ Paul Ardenne, «Marcher, Manifester», Parpaings, n. 18, 2000, p. 20.
- ^ Martin Heidegger, Construir, habitar, pensar. Barcelona: Serbal, 1994, s.p.
- ^ Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milénio (Lições americanas). Lisboa: Teorema, 1994, p. 18.
- ^ Marcel Duchamp, Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1975, p. 185.
- ^ Roberto Calasso, Os quarenta e nove degraus. Lisboa: Cotovia, 1998, p. 47.