Entrevista a Cristina Mateus.
Publicada na revista Arq./a: Arquitectura e Arte, n. 25, Maio/Junho 2004, pp. 86-89. ISSN: 1647-077X.
Na exposição que apresenta na Galeria Marta Vidal no Porto trabalha sobre conceitos que destaca no título da mostra: no meio.
Apesar de parecer que há aqui uma convergência, isto é, a do meio, talvez se possa dizer que existem vários centros nesta exposição. Vários pontos de partida, várias hipóteses… Por um lado o vídeo, que é o trabalho que dá nome à exposição. Nele vemos um objecto estranho no meio de um céu azul, um objecto que não se movimenta muito apesar de sabermos que está realmente a movimentar-se e a velocidades altíssimas. Há algo de estranho nesse objecto, e de suspensão, ele está ali a pairar no meio de um espaço aberto. Por outro lado, é uma imagem que funciona numa ideia de espelho. São duas imagens opostas, ou seja, temos uma imagem que aparece duplicada e invertida ao mesmo tempo, que tem uma linha no centro, um ponto para onde parece convergir o próprio movimento da imagem. Há uma linha de união das duas imagens que me interessava também porque é uma espécie de um ponto de união, um espaço imperceptível, mas para onde as coisas parecem convergir ou fugir.
Para além do vídeo está presente uma série de fotografias…
É uma sequência longa de fotografias de objectos, dos quais perdemos completamente a noção dos limites. As imagens funcionam por si e ao mesmo tempo como um todo. Não há ali propriamente uma hierarquia nas imagens, todas elas são importantes e ao mesmo tempo insignificantes. Todas elas precisam umas das outras para se processar alguma relação. Mas efectivamente perdemos a definição dos objectos, como se estivéssemos muito próximos das coisas e lhes perdêssemos os contornos.
A partir dessas fotografias foi elaborado um texto, uma espécie de inventário ou uma ficha técnica das imagens, texto esse que é omitido da exposição, deixando apesar de tudo marcas nos escantilhões que aparecem depois na outra sala. Esses escantilhões que parecem réguas, mas que ao mesmo tempo perderam o carácter de regularidade que elas têm, marcam e são definidores dos espaços do texto que não são as palavras. Ou seja, do espaço entre as linhas, do espaço entre as palavras do texto. O texto desaparece desta forma e, como no vídeo, há também o desaparecimento dum corpo, da presença do nosso corpo.
Em obras anteriores a presença do corpo era muito evidente no seu trabalho, por exemplo em O meu corpo é o teu corpo (1996), Evasão (1997). Nestes trabalhos, como explica, a ausência surge reforçada. Quer comentar?
É uma outra forma de presença. Logo na primeira exposição, quando apresentava algumas pinturas, nelas não aparecia nenhum corpo, mas havia a consciência de que apesar de tudo existia a marcação de um vazio que implicava a necessidade de ter uma presença efectiva, marcar um território. No caso desta exposição, o facto de ter omitido o corpo do avião torna esse corpo presente, exactamente por essa ausência. De qualquer maneira quando utilizo imagens do corpo, funciona a ideia de que o que está ali é o mínimo indispensável, sem artifício nenhum, como se o corpo estivesse a falar de um certo vazio. Acho que funciona muito nessa passagem, aquilo que é mas ao mesmo tempo não é.
A ausência e a presença não são dimensões estritamente demarcadas?
Esta exposição fala um pouco desse espaço entre as coisas. Há um vídeo antigo que eu tenho que é o Sim-Não (1996) em que a mesma pessoa frente a frente consigo mesma vai dizendo «sim» - «não». Nesse vídeo o mais importante, não são aqueles momentos em que ela diz «sim» ou «não», mas o resto do tempo em que não há nem «sim» nem «não». O momento em que as duas personagens olham simplesmente uma para a outra, acaba por ser provavelmente o espaço em que se quer mover o vídeo. Esses dois momentos, o «sim» e o «não», têm a ver com este espaço entre as coisas, o espaço entre os tais objectos, o espaço entre as palavras e outras coisas que eu tenho feito.
Esta exposição também se esteve para chamar Entre, que era precisamente essa ideia de estar entre, essa linha do vídeo que está entre as duas imagens. Portanto os três núcleos de trabalhos funcionam todos eles neste exercício, ligando-se entre si. Esta exposição também anda à volta da ideia de que naquilo que não é perceptível, que não se lê, haverá espaço para alguma coisa, e de que a realidade não é a nossa realidade, há uma realidade mais intensa. O contacto com a parcialidade, com uma parte, de alguma forma nos remete mais intensamente para a realidade. Tem a ver também com a imagem fractal, tomar a parte pelo todo. A representação é sempre isso, é sempre uma parte.
A questão da ilusão, da representação, a figura da inversão, do desdobramento são aspectos que podem relacionar-se muito com a sua obra…
Essa questão da ilusão existe neste caso pelo lado da duplicação da imagem, da ideia de uma imagem em espelho. Esta questão do espelho tem-me interessado. Nas imagens da exposição Posição Invertida, onde uma sequência de imagens da cidade invertidas, era como se nos obrigassem também a uma inversão do nosso próprio corpo. Isto tem sido realmente algo que me tem interessado.
Oscila muito entre o uso do vídeo e da fotografia. O que é que sustenta a escolha de um determinado suporte?
Acho que é dificil dizer. Apesar de a minha primeira exposição ainda ter pintura, comecei a sentir algum desconforto com o meio e a procurar outras coisas. O vídeo apareceu na altura, até primeiro do que a fotografia, porque por um lado a manipulação era muito simplificada e eu utilizava-o também nessa perspectiva. Continuo a utilizá-lo dessa forma. Este vídeo, No meio, é completamente simples, não tem grandes artifícios, e o facto de a imagem aparecer em espelho é um dos processos mais ancestrais da representação, que nos remete imediatamente para a ideia da nossa primeira imagem ao espelho. O vídeo apareceu pela facilidade da sua utilização, e pela ligação a um não-artifício, apesar de ser tecnologia, e ainda porque me seduzia essa possibilidade de produzir imagens em movimento. Uma coisa que a pintura dificilmente faz.
Eu nunca me liguei à fotografia, nem sou fotógrafa, a minha aproximação dá-se pela funcionalidade. Portanto são meios que me surgem naturalmente. Apesar de já ter feito outras coisas, com objectos, o vídeo e a fotografia aparecem naturalmente como uma ferramenta. Mas isso não quer dizer que não apareçam outras possibilidades, como neste caso os escantilhões e os próprios desenhos. Nesta exposição eu tive esta surpresa do desenho, porque eu já há muito tempo que não apresentava nada que resultasse de uma manualidade, de um trabalho de atelier e isso deu-me algum prazer. Foi muito interessante porque é um tempo completamente diferente, distinto do da fotografia ou do vídeo, o qual é muito mais o do imediato. E no caso dos desenhos implicava estar muito tempo a trabalhar. Nesta exposição apresentei dois desenhos, mas fiz muitos mais, e para chegar a esta solução demorei mais tempo do que demoro a fazer ou pensar um vídeo. E também o facto de ir para o atelier e ter aquele tempo, que é um tempo diferente do tempo de estar ao computador, ou estar no laboratório a pensar ou a produzir as imagens.
O tempo de produção do desenho é distinto, é um ritmo completamente distinto de quando se clica na máquina fotográfica ou se captam imagens em vídeo. Isso foi bom fazer. Foi interessante.
Cristina Mateus nasceu em 1968, no Porto. A sua primeira exposição individual, Grau Zero, foi realizada na Galeria Quadrum em 1994. A título individual, também expôs Esta é a minha imagem (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 1995), Não digas nada (Galeria Presença, Porto, 1998), Political body (Institute of Visual Arts, University of Wisconsin, Milwaukee, E.U.A.,1999), Fuga (Galeria Cesar, Lisboa, 2000) e Posição invertida (Galeria Marta Vidal, Porto, 2000). De entre as exposições colectivas que integrou, destacam-se: Alegorias de uma crise (Galeria A5, Santo Tirso, 1993), Jetlag (Reitoria da Universidade de Lisboa, 1996), Mais tempo menos história (Fundação de Serralves, Porto, 1996), Zapping ecstasy (CAPC, Coimbra, 1996), Em torno de Camilo (Fundação Cupertino de Miranda, Vila Nova de Famalicão, 1997), Mediações (Palácio Galveias, Lisboa, 1997), Além da Água (Beja, 1997), Paisagem económica urbana (Graça Fonseca, Lisboa, 1997), Anatomias contemporâneas (Fundição de Oeiras, Oeiras, 1997), 1911-1999. O ensino médico em Lisboa no início do século. Sete artistas contemporâneos evocam a geração médica de 1911 (Galeria de Exposições Temporárias, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1999), Quarto Interior (W.C. Container, Edifício Artes em Partes, Porto, 1999), Corpo maior (Galeria Presença, Porto, 1999), Ruído (Galeria Cesar, Lisboa, 1999), Arritmia (Mercado Ferreira Borges, Porto, 2000), Four rooms, a kitchen and a view (Porto, 2000), 2000), 321 m2, trabalhos de uma colecção particular (CAPC, Coimbra, 2001), Experiência do lugar (Museu de História da Medicina, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Porto, 2001), Círculo F (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 2002), Arte-Público (Fundação de Serralves, Porto, 2002), Objectos Cruzados (Experimentadesign-Bienal de Lisboa, 2003) e Thank God It’s Almost Christmas (Galeria Marta Vidal, Porto, 2003). Desde a segunda metade da década de noventa, vem igualmente partipando em diversas exposições colectivas no estrangeiro, das quais se destaca: Os Paseos de Euclides (Bienal de Pontevedra, Espanha, 1996), 5th International Istanbul Biennal (Istambul, 1997), Observatório, Fotografia Contemporánea Portuguesa (Sala de Exposiciones del Canal de Isabel II, Madrid, Espanha, 1998), Nuevos camiños, Amenazas y promesas del arte electrónico (Casa das Artes, Vigo, Espanha, 1999), Four rooms a kitchen and a view (Helsínquia, Finlândia, 2000), Plano XXI – Portuguese Contemporary Art (Glasgow, Reino Unido), Uncertain Signs - True Stories (Badischer Kunstverein Karlsruhe, Alemanha, 2002), Post 25 A (Edifício Paraninfo, Saragoça, Espanha, 2003), Encuentro entre 2 colecciones, Fundação de Serralves-Fundación la Caixa, Arte portugués y español de los 90 (Centro Cultural Fonseca/Cappilla del Colegio Mayor Fonseca, Salamanca, Espanha, 2003), Imaxinarte (Centro On Caixa Galicia, Corunha, Espanha, 2004). Cristina Mateus é co-editora da revista electrónica VIROSE (www.virose.pt). Presentemente expõe No meio, na Galeria Marta Vidal (Porto).