Entrevista a Ângela Ferreira.
Publicada na revista Arq./a: Arquitectura e Arte, n. 23 (Janeiro/Fevereiro 2004, pp. 86-89. ISSN: 1647-077X.
Quais são as linhas gerais da sua prática escultórica?
O meu trabalho tem girado, desde o início, à volta do problema de criar um discurso plástico que seja suficientemente estimulante do ponto de vista intelectual e formal, com validade na produção artística da contemporaneidade e, simultaneamente, que tenha um conteúdo político e social pertinente. Diria que essas são as duas grandes linhas do meu trabalho. Não ilustram propriamente os assuntos que depois abordo, mas ilustram a energia que motiva a minha prática artística.
A cultura modernista surge como uma das referências destacadas da sua obra. Que relação estabelece com esse legado?
O modernismo é um dado da minha formação. Fui educada numa escola de Belas Artes que promovia a ideologia modernista. E os meus professores, no fim dos anos 70, estando bem informados da contemporaneidade de então, eram muito naturalmente modernistas afincados. A minha linguagem plástica tem portanto uma raiz fortemente modernista. Porque também tenho um discurso crítico, no sentido de fazer perguntas ao que me rodeia, uma das evoluções normais foi também questionar essa linguagem plástica em que tinha sido educada. Para além disso, é preciso não esquecer que o Séc. XX foi ocupado na sua grande parte por um discurso modernista. Estamos a falar de modernismo em variadíssimas formas - desde Braque, passando pelo Dadaísmo, muito mais tarde, por um alto modernismo americano, caso do minimalismo e do conceptualismo que são movimentos de grande sofisticação modernista - e lidando com os entremeios e com a ideia de modernismo do ponto de vista da arquitectura. O modernismo é uma linguagem que domina o Séc. XX e domina as imagens e os eventos que nos ocupam a mente. Logo o questionamento do modernismo surge claramente porque ele está muito presente. E para ser mais específica, diria que as minhas preocupações passam pelo modernismo na arquitectura, pela curiosidade que senti em relação ao modernismo e fascismo, sobretudo, pela estranha e interessante relação que existe em Portugal.
Por exemplo, na peça Emigração (1994), faz referência a Almada Negreiros, mas também a Carl Andre e a Jeff Koons, autores associados à cultura minimalista e ao pós-modernismo. Considera importante a existência de um discurso assente na interacção e no cruzamento de diferentes referências?
O meu discurso é todo baseado na ideia de referência. Sobretudo em trabalhos mais antigos, como é o caso de Emigração, em que a referência era uma parte fundamental da minha metodologia de trabalho. E ainda é, mas acho que agora o processo dilui-se de uma forma mais complexa. Por então, pelos tempos da Emigração, em 1993 e 1994, era de facto essencial na minha metodologia de trabalho, procurar uma referência conceptual e visual que pudesse levar-me a assuntos que me interessavam.
A intenção era fazer dialogar essas referências e procurar o verdadeiro conteúdo dessas obras nos entremeios desses diálogos. Podemos até pensar numa obra em que isso é ainda mais simples do que em Emigração, que é apesar de tudo uma obra muito complexa, com muitas referências. Por exemplo, em Sites and Services ou em Marquises, a ideia surge exposta de uma maneira muito clara. Primeiro porque existem referências que podem ser simultaneamente lidas como arte modernista e como arquitectura popular, de um urbanismo muito prático e pragmático. Depois porque existe um diálogo entre essas referências presentes nas imagens, e as esculturas, que são abertamente formalistas e modernistas. Obviamente, a minha intenção era que o conteúdo do trabalho se situasse entre uma coisa e outra. As esculturas não são válidas por si só e o mesmo acontece com as referências. É o espaço entre as duas que me interessa como produção de conteúdo, de intencionalidade e de leitura por parte do espectador.
Ao longo do tempo foi mantendo uma relação privilegiada com a arquitectura. Como é que situa a influência da arquitectura no seio da sua obra?
A história da arquitectura no meu trabalho é muito engraçada porque não é tão pouco escolhida por mim. Ou seja, nunca percebi muito bem se fui eu que escolhi a arquitectura ou se foi a arquitectura que me escolheu a mim. Creio que há coisas que a pessoa procura intuitivamente, por razões mais subliminares, e penso que a arquitectura é uma dessas, onde os gostos e as apetências vêm de encontro a preocupações mais racionais. Voltando há ideia de referência de que falámos anteriormente, o ponto de partida para muitos dos meus trabalhos era o de procurar uma referência no mundo da cultura popular que oferecesse um acesso muito democrático a uma obra de arte e que não estivesse restrita a um público específico de arte contemporânea. É claro que o trabalho que faço depois com essa referência passa por vários níveis de sofisticação e as pessoas podem entrar ou não nesse discurso. Todavia a escolha da referência era sempre feita tendo por base um ponto de partida muito popular, por assim dizer. O que aconteceu foi que quanto mais procurei, mais frequentemente encontrei na arquitectura uma resposta satisfatória a esse ponto de partida. De facto, a arquitectura possui certas qualidades inerentes que são muito do agrado das minhas necessidades como escultora e como artista plástica. Ela é sempre o resultado de uma sociedade, faz parte de uma sociedade e é produzida por uma sociedade. E reflecte de muitas maneiras, algumas mais óbvias outras mais subtis, preocupações e necessidades dessa sociedade. Além disso, a arquitectura tem algo que para mim é uma grande vantagem em relação à arte, que é o facto de ser um instrumento utilizável. Nós usufruímos da arquitectura, temos a possibilidade de entrar nela e necessitamos dela para gerir as nossas necessidades humanas.
A arquitectura está muito presente em Zip Zap Circus School (2000-2002). O que é que essa experiência representa para si?
O Zip Zap Circus School é uma espécie de projecto que, neste ponto da minha carreira, ainda sinto como o culminar de muitas coisas. É um projecto que me ocupou imenso tempo e que vem de encontro a muitas necessidades e preocupações que senti por variadíssimas razões. Primeiro porque vem no fim de uma longa investigação sobre a arquitectura, e na sequência daquilo que eu acabei de dizer, acaba por ser um projecto em que procuro a arquitectura como uma referência popular. Mas neste caso não parti de um produto existente, mas sim de um produto efémero, de um momento da conceptualização da arquitectura em que ela não existe. É quase a negação da própria arquitectura. O Zip Zap nasce claramente da procura de tentar entender o que é que é uma arquitectura que não existe, o que é que é uma arquitectura que é desejada e que não se manifesta em forma tridimensional. Penso que essa procura tem muito a ver com a minha necessidade de fazer ligações entre a arquitectura e a escultura. A escultura é por natureza mais efémera, a própria ideia de uma obra de arte é por natureza mais efémera, e por conseguinte a procura de uma arquitectura efémera, de uma arquitectura que é um desejo e não uma realidade, vem de encontro às minhas preocupações escultóricas. Por outro lado, é um projecto que junta muitas das minhas preocupações, digamos, mais superficiais, porque é um projecto que é claramente referenciado numa escola de circo existente, num projecto social, com todas as implicações que estes projectos têm numa sociedade como é a da África do Sul. Trata-se em concreto de um projecto que traz o trabalho de um arquitecto luso-moçambicano, Pancho Guedes, para junto da minha obra. A quem peço para reproduzir e construir uma parte do projecto que ele desenhou. O Pancho Guedes é uma pessoa que desenvolve uma obra arquitectónica em Moçambique com qualidades únicas, e que é um grande investigador sobre como se pode adaptar o modernismo a um contexto africano, um assunto que me interessa muito e que tenho vindo a desenvolver no meu trabalho. O Zip Zap também é um projecto que acumula muitas outras referências, por exemplo, a maqueta da casa/museu que Mies van der Rohe desenhou para a família Kröller-Müller, e que se desenvolve no tempo e no espaço. Deu a volta ao mundo de uma forma metafórica, culminado com uma apresentação pública na Cidade do Cabo, onde os próprios alunos do circo tiveram a oportunidade de habitarem e de fazerem performances nesse espaço arquitectónico, dando vida ao desejo de terem um edifício. Ou seja, é um projecto muito longo, que vai tendo conteúdos adicionais ao longo do tempo e que se desenvolve conceptualmente, vindo a satisfazer a minha maneira natural de trabalhar, que é a de continuar a pensar nos problemas e na forma de os apresentar.
Na quase totalidade das obras apresentadas nesta mostra antológica existe um contexto, lugares e realidades muito específicas que definem os pontos de partida de cada pesquisa. Não deixa de ser curioso que a exposição se intitule Em Sítio Algum. Que significado podemos atribuir a esse título?
Esse título foi especificamente escolhido para esta exposição, porque sendo uma exposição antológica, pressenti que iria relacionar-se com assuntos do meu trabalho ligados à distância e às relações existentes entre Portugal e a África, a Europa e a África. Esse é um discurso que tem vindo a ser muito procurado e muito explorado no meu trabalho. Todavia, sendo óbvio que é um discurso que me interessa e ocupa, foi minha ideia dar a esta exposição um título que não referisse nenhum lugar e remetesse para o facto de essa questão das relações intercontinentais não ser a única preocupação do trabalho. Eu situo o trabalho em nenhum sítio, porque ele ultrapassa as limitações desses sítios. Ou seja, sabendo que a exposição iria sublinhar em muito essa possível leitura do meu trabalho, tentei pedir para o situarem noutro sítio, que não fosse especificamente nenhum sítio.
Ângela Ferreira nasceu em 1958, em Maputo, Moçambique. Estudou Escultura na Michaelis School of Fine Art da Universidade da Cidade do Cabo. As suas primeiras exposições individuais datam da década de oitenta e tiveram lugar na África do Sul, em 1983 e 1989. Em Portugal, a sua primeira individual, A Propósito de…, aconteceu em 1993, no Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão/Fundação Calouste Gulbenkian. No ano seguinte, expõe Sites and Services na galeria Módulo – Centro Difusor de Arte. Neste mesmo espaço galerístico mostra em 1996 e 2000, dois outros projectos, respectivamente intitulados Reordering Reality e Pega, 2000. Simultaneamente, Ângela Ferreira exibiu individualmente a sua obra em outros espaços culturais e galerísticos, sendo de destacar: Uma Escala, uma Sequênia, o Engenho da Deriva e um Filme Retardado (Museu do Chiado, Lisboa, 1995), Marquises (Coincidências – Jornadas de Arte Contemporânea, Porto, 1996), Doubled Sided (Chinati Foundation, U.S.A., 1996 e Ibis Art Center, África do Sul, 1997), Sem Título 1998 (Galeria Luís Serpa Projectos/Lisboa e La Lavanderia Fundació/Barcelona), Duas Casas (Galeria Luís Serpa Projectos, 2001), Visitas Privadas (Museu Nacional Soares dos Reis, Porto, 2002) e Em Sítio Algum (Museu do Chiado, Lisboa, 2003). Durante este período teve também uma presença assídua em significativas exposições colectivas. Das mostras em que participou durante os anos noventa, destacam-se: Recent Acquisitions (South African National Gallery, Cidade do Cabo, 1991), Acabamentos de Luxo (Associção Portuguesa de Arquitectos, Lisboa, 1994), Depois de Amanhã (Centro Cultural de Belém, Lisboa, 1994), Peninsulares (Galeria Antoni Estrani, Barcelona, 1995), Artistas/Arquitectos (CCB, Lisboa, 1996), A Arte, os Artistas e o Outro (Fundação Cupertino de Miranda, Vila Nova de Famalicão, 1997), Prémio União Latina (FCG, Lisboa, 1997), Navegar é Preciso (Centro Cultural de São Paulo, 1998), Colecção António Cachola (Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo, Badajoz, 1999). Na presente década, merece referência a exibição da sua obra nas seguintes mostras colectivas: Initiare (CCB, 2000), More Works about Buildings and Food (Fundição de Oeiras, 2000), Squatters (Museu de Arte Contemporânea de Serralves/Porto, Witte de With/Roterdão, 2001), In the Meantime…(Appel Foundation, Amsterdão, 2001), Diferença e Conflito (Museu do Chiado, 2002). Cabe ainda mencionar a sua participação nas seguintes bienais de arte: Arrivals/Departures (Bienal de Joanesburgo, 1995), Bienal Internacional das Caldas da Rainha (1997), Graft (Bienal de Joanesburgo, 1998), Bienal AIP (Europarque, Sta. Maria da Feira, 1998), Bienal de Arte de Pontevedra (Espanha, 1998), The Passion and the Wave (Bienal de Istambul, Turquia, 1999), Signs of Life (Bienal de Melburne, Austrália, 1999), Continuare (Bienal da Maia, 2003). Ângela Ferreira também concebeu trabalhos no domínio da arte pública. Realizou Kanimambo, uma intervenção escultórica no âmbito da Expo’98 – Exposição Mundial de Lisboa e apresentou a instalação Zip Zap Circus School numa zona urbana da Cidade do Cabo (Institute of Contemporary Art, 2002). A sua obra está representada em diversas colecções públicas e privadas.