Entrevista a Luís Serpa publicada na Artecapital, Janeiro 2007.
Galerista, Luís Serpa é um agente cultural que liderou a mudança do panorama das artes visuais no nosso país. Foi um dos responsáveis pela realização da exposição de referência dos anos 80, Depois do Modernismo (1983) e, ao longo de vinte e dois anos, fez da Galeria Cómicos/Luís Serpa Projectos um espaço de forte dinâmica artística, cuja capacidade de afirmação internacional foi ímpar no meio português. Nesta longa conversa falámos de muitos aspectos do seu percurso, actividade e projectos que nos deram uma visão retrospectiva sobre os vinte anos de actividade da sua galeria e sobre o contexto artístico português dos anos 80 até à actualidade.
Nos últimos anos têm surgido várias iniciativas que tentam fazer a análise do que foram os anos 80, apresentando visões e leituras. Como observa este fenómeno de maior atenção à decada de 80?
É capaz de ser uma atitude cíclica querer fazer o state of the arts a partir de décadas ou finais de ciclo. Organizei uma iniciativa intitulada In Extremis 1999, uma tentativa de agarrar o pulso à situação e perceber se havia alguma transformação no estado das artes pelo facto de acabar a década, o século e o milénio. Como é óbvio, não chegámos a conclusão nenhuma, (não seria para chegarmos), mas foi um trabalho interessante de análise de vários capítulos — da sociedade, da cultura, da economia, da política, da(s) arte(s). Foi uma iniciativa que gostei de coordenar. Houve conferências aos sábados e art talks durante a semana com artistas e críticos, e fizemos, ao longo do ano, exposições com artistas de um determinado país que trabalhavam num outro continente, como a Leiko Ikemura (japonesa) que trabalhava em Colónia; o americano Charles Worthen que trabalhava no Japão; a Ângela Ferreira que trabalhava na África do Sul; o Txomin Badiola (basco) em Nova Iorque.
«Qual o reflexo de um artista de uma determinada área geográfica a trabalhar noutra? Influencia o seu trabalho, já na perspectiva do conceito do transculturalismo que estava a surgir no âmbito da globalização?» Portanto, fez-se uma análise com várias referências — ao Frederic Jameson, aos teóricos da economia, da sociedade, da sociologia, da política. Uma equipa coordenada pelo João Pinharanda elaborou um Cronograma Comparado dos trinta anos antecedentes e tentou fazer uma leitura retrospectiva, obviamente incluindo os anos 90 e certamente os anos 80. Esse cronograma ocupava todas as paredes da galeria. Foi uma pesquisa que realizou com duas assistentes para tentar fazer os highlights em cada uma das áreas nesses anos. Periódica ou anualmente, as instituições, ou até a imprensa especializada, costumam fazer «o melhor de cada ano»; depois, somam-se esses anos todos e tenta-se perceber o que foi marcante, o que foi considerado como antecedente, o que, por sua vez, nos anos seguintes, já surge como consequente. É uma análise regular, normal, cíclica, que se percebe que tem de ser feita para avaliar o desempenho dos diversos protagonistas desta área.
Do seu ponto de vista, o que é que caracterizou a década de 80 ao nível das artes?
Ao nível das artes, em Portugal, tínhamos vivido o período do pós-25 de Abril e tínhamos algumas esperanças que contribuísse de alguma forma para uma renovação imediata; mas imediatamente não deu qualquer fruto. Creio que foi mesmo a partir dos anos 80 e da exposição Depois do Modernismo que se começou a falar de alguns temas que, até então, eram tabu pelo apparatt da cultura e que constituía o espírito dominante. Viemos quebrar um pouco isso com a exposição e pôr em causa o statu quo que na altura se vivia. Também Depois do Modernismo acabou por servir de cadeia de transmissão do pensamento pós-moderno e do neo-expressionismo na pintura, que grassava nessa altura já tanto na Europa como nos Estados Unidos. Não se inventou nada, apenas se transmitiu, fez-se eco do que era o espírito dos anos 80.
Rapidamente se percebeu que era um período muito limitado, muito conciso, com as suas idiossincrasias e que provavelmente iria ser um período não demasiadamente interessante a nível da criatividade, porque não se constituía como movimento de ruptura, mas de releitura da História. Aquela ideia do Homem Renascentista era o sentido que os pós-modernos tinham: uma visão mais enciclopédica do que futurista (no sentido do aparecimento de uma nova ruptura) e não no sentido em que o entendemos hoje. Foi um «marcar passo», mas que foi necessário. Os artistas e o mundo da arte necessitaram fazer esse compasso de espera, voltar atrás e fazer a (re)leitura da História e, inclusive, utilizar elementos da tradição para poder, de algum modo, relançar o discurso sobre o conceito de arte. Portanto, os anos 80 foram uma «sopa de pedra» onde isso tudo aconteceu; constituiu também um período de libertação face ao rigor do conceptualismo do final dos anos 70 e ao Modernismo, muito espartilhado e muito agarrado a preconceitos (já não a conceitos) estéticos, numa linguagem muito fria que vinha acontecendo. Foi uma oposição a essa arte que se estava a produzir; todo aquele excesso de cor e de expressionismo foi uma reacção a essa atitude. Basicamente, a releitura que se faz dos anos 80 acaba sempre por se centrar à volta destes temas e não passou ou não passará disso, embora tenha influenciado decisivamente outras áreas do pensamento.
No texto de apresentação de Depois do Modernismo referia-se que um dos objectivos era o de discutir a problemática pós-moderna. De que forma é que em Portugal se estava a par desse debate?
Em Portugal, não existia consciência disso. Foi quando regressei de Itália, onde estudei até 1982, que arrastei essa esteira do «pós-moderno» que se vivia no design e na arquitectura, pois frequentava o curso de design e de museologia além de uma forte relação com a arquitectura. Portanto, achei que de alguma maneira esse era o tema que devia ser tratado. De qualquer modo, essa iniciativa estava muito concentrada no título que se debruçava sobre o depois do Modernismo e não Pós-modernismo, diferença semântica muito grande. Havia aí uma subtileza importante. De qualquer modo, os participantes vivenciaram essa agitação, essa onda de pós-modernidade que era mais evidenciada no caso da pintura com o neo-expressionismo havendo, no campo da arquitectura e do design, algumas tentativas decorativistas, razão pela qual a Escola do Porto elaborou um manifesto dizendo que não participava porque a exposição estava muito orientada para o formalismo pós-moderno. Há poucos anos (2002), houve uma discussão promovida através do Jornal dos Arquitectos e coordenada pelo Manuel Graça Dias, em que estiveram presentes o Alexandre Alves Costa, Álvaro Siza, Domingos Tavares, o Eduardo Souto Moura e o Sérgio Fernandes, sobre as razões pelas quais não participaram no Depois do Modernismo.
A ideia do título Depois do Modernismo foi primeiramente lançada pelo António Cerveira Pinto e posteriormente pelo Leonel Moura e secundada pelos restantes comissários e lembro-me que estrategicamente foi o Eduardo Prado Coelho que lançou o debate no Expresso. Houve dois artigos — o primeiro do Eduardo Prado Coelho e o segundo do Alexandre Pomar — sobre o pós-modernismo. Depois, explorámos essa via e Depois do Modernismo lançou o debate e a polémica sobre os anos 80.
Para nós, portugueses, foi uma pedrada no charco porque estava tudo muito enfeudado à crítica sedeada na AICA (Association Internationale des Critiques d´Art – Portugal), com uma task force muito peculiar, em que cada um dos dirigentes da AICA defendia um academismo absolutamente insuportável. Na altura, era necessário romper com esse colete-de-forças que a AICA representava e que dominava a cena artística portuguesa. Por isso, creio que foi bom ter sido um grupo de artistas que tomou por si a mão da organização desse evento sem a tutela de Críticos que, de alguma maneira, poderiam condicionar a iniciativa ou fazê-la na esteira do comissariado — quase um novo «ismo» — que utiliza os artistas um pouco como marionetas, ou figuras articuladas, com um discurso teórico no sentido de querer lançar uma nova vanguarda. Nós quisemos cortar com essa metodologia de trabalho e sermos nós próprios a organizá-la. Acho que foi uma exposição que acabou por ser muito bem organizada e que teve um efeito multiplicador. A galeria surge na esteira dessa iniciativa.
O debate sobre o pós-modernismo fazia-se por que linhas? Porque normalmente quando se fala de pós-modernismo, fala-se de vários aspectos. Naquela altura, qual era o aspecto que mais vos interessava explorar?
Não havia um aspecto que nos interessasse mais, pois não havia manifesto nem panfleto que dissesse exactamente aquilo que queríamos ou deveríamos dizer, ou aquilo que era politicamente correcto, dentro desse conceito de manifesto que provinha das vanguardas tradicionais. Era, evidentemente, uma atitude ecléctica que rompia, como não poderia deixar de ser, com a tradição de eventos sobre uma bandeira, uma tendência ou uma escola. Foi, fundamentalmente, mais um movimento geracional, não direi insurreccional, no sentido tradicional de rupturas, mas uma atitude que os artistas quiseram manifestando a sua diferenciação ao poder instituído, manipulador, em muitos casos até, persecutório que vigorava ainda em Portugal no campo das artes visuais.
Houve reacções fortes. Essas pessoas organizaram-se; em termos de imprensa escrita e de rádio, havia programas decididamente muito direccionados, ideologicamente muito concertados, para destruir toda esta geração que participou no Depois do Modernismo, mas sempre achei que teríamos de ter a capacidade de sair pela «esquerda-baixa» e afirmarmo-nos.
O elemento fundamental, o leitmotiv do aparecimento da galeria foi exactamente essa vontade inequívoca de nos querermos internacionalizar e romper com essa fronteira; seria através de fora, mais uma vez, como é tradição em Portugal desde sempre, que ocorreria a legitimação tanto dos artistas que trabalharam na galeria como da própria galeria. Impusemos uma dinâmica incontornável e não controlável por parte desse aparelho institucionalizado.
A velocidade do circuito internacional no final dos anos 80 proporcionou à galeria a sua integração o que permitiu arrumar a um canto todos os «Velhos do Restelo» que tentaram, por todas as maneiras, silenciar um núcleo de artistas e de teóricos que vinham emergindo e afirmando desde o início da década.
Depois do Modernismo tem aquela marca para os anos 80 que terá a Alternativa Zero para os anos 70. Considera que teve verdadeira repercussão em Portugal? Ou tal como a Alternativa Zero foi um acontecimento determinante a dado momento, mas que não teve poder para criar uma dinâmica que lhe sobrevivesse?
Serei suspeito ao dizer que teve. Tenho lido textos de alguns críticos que remetem Depois do Modernismo para uma iniciativa epigonal, isto é, à semelhança do que se fazia lá fora naquela época. Mas consideremos, por exemplo, Arquipélago: também foi uma exposição de uma geração que surgiu como resposta ao Depois do Modernismo; ou a exposição Continentes, também uma mostra de artistas, ela própria também exposta na Sociedade Nacional de Belas Artes. Vê-se que a minha geração, nascida nos anos quarenta, e as seguintes, nascidas nos anos cinquenta e sessenta, tiveram necessidade de se organizar da mesma maneira e fazer grandes exposições, imperativas ao nível da afirmação geracional, que não traziam em si o estigma das vanguardas tradicionais, com os tais panfletos/manifestos e com as respectivas ideologias.
A geração do Cabrita, do Calapez, do Croft e, posteriormente, o grupo Homeostético (o Proença, o Portugal, o Xana,…), todos os que integraram Continentes, organizaram-se da mesma maneira, com grande visibilidade. Só isso é a consequência directa de Depois do Modernismo e creio que, se houve alguma coisa que se conseguiu, foi provar que, organizando-se ou por grupos de interesse ou por gerações, os artistas eram capazes de tomar conta das suas próprias carreiras e apresentarem-se com alguma visibilidade e estatuto, não direi de tendência ou de escola, mas, pelo menos, de vontade de grupo. Isso, de alguma maneira, marcou uma série de iniciativas posteriores, até com carácter menor, que se começaram a organizar.
Sou defensor de que os artistas, sendo os melhores gestores das suas carreiras, se devem organizar para escapar ao controlo institucional. Na altura, era impossível os artistas terem capacidade financeira e aptidão para organizar eventos fora do apoio directo e institucional da Secretaria de Estado da Cultura de então ou da Fundação Gulbenkian, que eram as instituições que tutelavam as iniciativas culturais. Ou, então, das bienais que existiam na altura, em que os júris eram sempre os mesmos — havia sempre um representante da Sociedade Nacional de Belas Artes, da Fundação Gulbenkian, da Secretaria de Estado da Cultura e, esses três elementos, eram sempre os mesmos. Houvesse Bienais em Vila Nova de Cerveira, Vila Real, em Lagos, em Óbidos, eram sempre os mesmos. Portanto, era um ciclo vicioso e, para sair desse ciclo, sempre fui de opinião que os artistas se deviam organizar. Tal como hoje, em que não têm capacidade de penetrar nas galerias, sendo muito limitada a actividade de museus ou centros culturais para a quantidade de artistas que existem e que vão aparecendo. Há que ter imaginação suficiente para fugir a esse circuito que, no fundo, é manipulador. Essas atitudes que tomámos com Depois do Modernismo, e depois com Arquipélagos e com Continentes, têm de ser incentivadas. Acho que é esse mesmo o modelo que tem de ser implementado. Mas não deixa de ser irónico que para poderem existir solicitaram apoio ás Instituições que criticavam!!!
Quais são as marcas identitárias que podem caracterizar a produção artística desses anos?
Na pintura foi o neo-expressionismo que quebrou, através da ironia, da cor e do gesto, a frieza do conceptualismo dos anos 70. Na arquitectura, intervieram a paródia, a utilização da cor e de elementos classicizantes, inclusive kitsch. As exposições de arquitectura na galeria, que representaram uma linha excessivamente decorativista pós-moderna, tiveram algumas consequências com projectos mais depuradas, como era o espaço desenhado pelo João Luís Carrilho da Graça, em 1998 para A Cidade e as Estrelas. Gostaria bastante de ter feito mais iniciativas no âmbito da arquitectura.
A fotografia começou, talvez, a ser entendida de uma outra maneira. A exposição do Robert Mapplethorpe assinalou desde logo uma diferença muito grande, nomeadamente com a Cindy Sherman, o John Coplans, o Craigie Horsfield, o Boyd Webb e, posteriormente, com obras da Hannah Collins, Txomin Badiola e Andres Serrano, a passagem do pequeno para o grande formato na obra do Jorge Molder, a apresentação e evolução do trabalho do Daniel Blaufuks, a introdução do vídeo com a Judith Barry e a Ângela Ferreira. Com a apresentação de instalações, do Robert Wilson e do Hamish Fulton ou no trabalho do Michelangelo Pistoletto e do Gilberto Zorio. Foi uma programação baseada não só no espírito de tendências dos anos 80 e 90 mas, frequentemente, fazendo revisitações históricas à Arte Povera, à fotografia a nível da Nova Subjectividade – que, para mim, tinha importância na altura – e a algumas instalações de artistas multimédia, como era o caso do Jan Fabre ou do Bob Wilson que faziam simultaneamente teatro e ópera, entre outras coisas; e, obviamente, a uma recuperação do conceptualismo através de algumas exposições do Joseph Kosuth.
A galeria nunca se afirmou como uma galeria de tendência. Rapidamente passou daquela euforia de alguns exemplos mais vincadamente pós-modernos das exposições de arquitectura— do Tomás Taveira, Troufa Real, Luiz Cunha, Manuel Graça Dias ou do Amâncio Guedes—, mas foi sempre uma programação que tentava mostrar artistas emergentes, como era o caso do Juan Muñoz, do Pedro Cabrita Reis e da Cristina Iglesias, com artistas mais consagrados, como chegou a ser o caso do John Coplans: ou, ainda, mostrando exposições com obras específicas de artistas sobre determinados temas.
Comecei a comissariar exposições que me pareceram bastante importantes para mostrar trabalhos específicos, já que não podia fazer sempre exposições individuais (não tinha capacidade financeira nem mercado para isso), com obras do Andy Warhol ou do Paladino, do Donald Judd… Tudo isso foi um esforço para introduzir paulatinamente artistas contemporâneos que, nos anos 80 e 90, tinham grande influência no panorama artístico, o que foi muito frutuoso para os Artistas portugueses já que, em convivência com esses artistas, se aprendeu muito.
A produção artística nacional espelhava esse panorama e a chegada desses artistas a Portugal?
Absolutamente. Penso que houve artistas que foram influenciados directamente por algum desses artistas internacionais, não só formalmente, mas também a nível da postura e da troca de ideias e de estar em contacto com eles. Isso abriu a cabeça a muita gente — abriu a mim, como abriu a coleccionadores, como abriu a críticos que também nunca os tinham conhecido. Há toda uma nova geração de artistas que vinha à galeria e que nunca pensou que pudessem estar aqui algumas dessas obras. Isso foi fantástico: ver entrar alunos de Faculdades, tanto de Belas Artes como de Arquitectura. Foi uma das maiores recompensas que tive pela actividade de todos estes anos.
Que opinião tem sobre as várias escolas do pós-modernismo? Fala-se de um pós-modernismo conservador e de um pós-modernismo de resistência… Como é que se situa ou se situou na altura?
A minha prática vem do conceptualismo do final dos anos 70. Foi a minha estadia posteriormente numa Universidade em Itália, na qual a pós-modernidade exasperava (a nível do design industrial e da arquitectura) que, de alguma maneira, me levou a interessar-me pelo fenómeno que se constituía como a zeitgeist, aquilo que estava naquele momento a emergir. Nunca fui um adepto fervoroso disso mas era necessário possibilitar a Portugal a inclusão nos centros de criação internacionais de modo a evitar a auto-exclusão sistémica provocada pelas «diferenças abissais entre o país e o resto da Europa» (M.Toussaint).
Provavelmente, só veiculei aquilo que determinado grupo artístico produziu nos anos 80. Promovi a visibilidade dessa produção mas não fui um teórico dessa corrente, embora tenha alguns textos publicados na área do design um pouco eufóricos. Posso ter sido indirectamente um impulsionador do pós-modernismo…
Na sua programação parece existir uma espécie de equilíbrio entre dar visibilidade às tendências do neo-expressionismo e à crítica da representação, por exemplo, na fotografia, com Cindy Sherman…
A nível teórico havia uma diferenciação entre o Lyotard e o Habermas. O primeiro ocupou-se do fim das grandes narrativas e, o segundo, sobre o significado do prefixo «pós» como um momento ou um período de transição. Mas na prática, isso influenciou pouco a prática artística a nível da pintura e da arquitectura. Talvez Jencks ou Venturi tenham proporcionado alguma discussão mais dinâmica para esta última. Sobre os primeiros foi algo um pouco mais transversal.
Apesar de ter organizado o Depois do Modernismo e de ter apresentado logo na primeira fase (nos dois ou três anos iniciais da galeria) exposições sobre este tema, rapidamente saí dessa programação, porque nunca me identifiquei muito com estas posturas… Achava interessante, a nível de uma leitura teórica, aquilo que se estava a passar, assim como achei importante reflectir sobre o que é o espírito do momento. Sempre tive uma postura de ser um leitor atento e de, pontualmente, veicular o trabalho de um determinado artista; mas nunca optei por ser uma galeria de tendência. Penso que é uma ideia errada considerar que a galeria foi pós-moderna. Nitidamente, não foi. Representou dinâmicas dos anos 80, tão variadas como aquelas que se podem ler hoje através do livro que publiquei.
Se fizermos a leitura das exposições que foram apresentadas (tirando a possibilidade das exposições que gostaria muito de ter feito de arquitectos estrangeiros, com trabalhos mais depurados), emerge a exposição de Móveis & Móveis (de design), ou as experiências de arquitectos e os designers e criadores portugueses; mas faltou nitidamente essa vertente internacional da arquitectura e do design que contrapusesse esta visão meramente decorativista que se fazia em Portugal nos anos 80. Coisa que veio a acontecer na programação em outras áreas, tanto na pintura como nas instalações ou na fotografia, principalmente.
Mas não gostaria que haja esse estigma e também não acho que seja uma leitura correcta em estigmatizar a galeria porque única e exclusivamente num determinado período apresentou esse tipo de exposições. Vejo isso com grande exterioridade e não me deixo ficar refém desta ou daquela posição pós-moderna, mais conservadora ou mais elitista.
A reputação dos anos 80 também nem sempre é muito favorável. Normalmente, anda associada a uma espécie de frenesim da comunicação social e mesmo do regresso à pintura. Considera que esta visão pode ser redutora ou acha que este período também foi vítima da expansão do mercado?
Esta situação de boom nas artes também é o reflexo do boom económico dos anos 80. Não sou cínico e hipócrita dizendo que não influenciou positivamente, por um lado, a actividade da galeria; mas também fomos vítimas dela — do crash que veio a seguir. Somos o espelho evidente destes períodos de aceleração e de retracção do mercado, porque trabalhamos no fio da navalha. Não subimos tanto ou não subimos o suficiente e, quando o crash aparece, também ficamos na curva de baixo. Esse tem sido para nós o grande handicap, em termos de manutenção de uma programação contínua, um desempenho linear, porque somos muito sensíveis às oscilações do mercado. Quando estamos a falar do mercado, somos sensíveis à falta de políticas de aquisições regulares por parte do Estado que, considero, fazem parte integrante do mercado; tal como somos muito sensíveis às oscilações do mercado privado, pois quando há crash ou quando existem investimentos em arte por compensação das quedas em bolsa, tudo isso se reflecte imediatamente na galeria. Por isso, temos uma vida muito atribulada, em termos financeiros. Creio que todas as galerias o terão. Temos, contudo, esta capacidade de resistir (indefinidamente?), pelo menos até agora; mas com grande entusiasmo, quando existem por parte dos Coleccionadores públicos e privados pequenos sinais ou pequenas atitudes de confiança naquilo que nós fazemos e nos adquirem algumas peças, algumas instalações ou, mesmo, algumas exposições. Isso mantém a «chama viva».
Nos anos 80, beneficiámos obviamente dessa situação de grande agitação a nível do mercado e dos meios de comunicação que espelhavam essa situação, de alguma entrada de capitais e de massa financeira que, tinha perfeita consciência, não pertencia ao sistema artístico, era exterior a ele. E, assim como «entrou-de-cabeça, saiu-de-mortal». Já estávamos à espera disso.
Fiz um livro sobre os vinte anos de actividade da galeria (Vinte Anos Galeria Cómicos /Luís Serpa Pojectos, 1984-2004) — e quem se dedique a estudar a programação compilada no livro percebe que, por exemplo, em 1990 quando há a Guerra do Golfo, em vez de me retrair faço uma fuga para a frente. Nos anos seguintes, até 94 inclusive, foram anos de uma programação intensíssima a nível internacional, com projectos que, penso, foram dos mais ricos entre os que fiz nestes vinte e dois anos.
Obviamente que com a Crise Asiática e com a recessão em Portugal, os anos 95 e 96 foram dramáticos; no pós-Lisboa Capital da Cultura ‘94 houve um vazio muito grande, tendo o mercado recuperado só em inícios de 1997 e tendo o seu auge em final de 2001, caindo em meados de 2003 e mantendo-se até 2006, contrariando frequentemente a dinâmica dos mercados internacionais; eventualmente, em 2007 poderá começar a recuperar.
Andamos quase sempre a contraciclo dessas dinâmicas internacionais. Em Londres ou Nova Iorque vemos a grande dinâmica do mercado. Nunca é possível acertarmos o passo com as dinâmicas internacionais porque Portugal tem estas idiossincrasias típicas de periferia (afinal os arquitectos do Porto tinham razão quando não participaram no Depois do Modernismo com o argumento de que a realidade portuguesa e a prática da arquitectura no nosso país não tinha nada a ver com os pressupostos da iniciativa!). Temos uma estratégia de desenvolvimento da economia dependente de eventos que se afirmem além fronteiras e não conseguimos dar resposta a tempo, de maneira a integrarmos a dinâmica da globalização; quando as economias começam a crescer, nós ainda estamos atrasados. Provavelmente, também temos uma capacidade de resistência ímpar porque vejo galerias internacionais importantíssimas a encerrar, quando há sinais de crise no estrangeiro e nós mantemo-nos abertos.
Em Portugal, talvez aquilo que é mais difícil de manter é uma estratégia sistemática, continuada, por parte do Estado e por parte das instituições, muito sensíveis a pequenas/grandes mudanças no seu seio. Depois, o animal vivo, contorcionista, que é o mercado privado, esse cresce, aparece, desaparece, expande-se rapidamente, encolhe, deprime-se. Em relação ao Estado o que se exige é que, para além de regulamentar, possa regular, intervir q.b. nas áreas económicas em que deve estar presente; mas na área da cultura isso não acontece. O subfinanciamento endémico da cultura não permite que o Estado cumpra a função de regulador. Regulamentador — fá-lo sempre de forma deficiente. As alternâncias governamentais fora de tempo têm sido muito prejudiciais à consolidação de um sistema sólido.
A nível das aquisições, existem critérios que considero, por vezes, duvidosos. Não se explicitam as políticas aquisitivas de uma maneira credível. As aquisições deveriam ser feitas como se faz uma colecção mas, enfim, cada um terá os seus critérios…
Em 1994 dá-se uma mudança de paradigma em termos do modelo seguido, em que o Luís Serpa dá um novo nome à Galeria (em 1996 fica a ser Luís Serpa Projectos) e aposta muito mais numa programação com ciclos temáticos. A que é que isso se deveu?
Mais tarde ou mais cedo, esta questão tem de ser esclarecida. A galeria, nos primeiros dez anos, foi uma galeria típica, com artistas que representava. Estas relações entre artistas e galeria, coleccionadores e críticos, têm de ser muito transparentes. Obviamente, os artistas portugueses tinham, na altura, uma prática profissional muito incipiente. Isto é, alguns sempre viveram de esquemas ou de estratagemas de sobrevivência; eu, por outro lado, nunca confundi estratagema com estratégia. O sentido de oportunidade de venda de determinadas obras a certas instituições ou a coleccionadores não pode ser confundida com o oportunismo de vender a qualquer preço. Os anos 90 — com a Guerra do Golfo — tiveram influências muito complicadas na nossa economia.
A galeria participou, na primeira década, numa estratégia de afirmação dos portugueses no estrangeiro, através de um grande esforço financeiro na participação em feiras de arte. A dinâmica da galeria trouxe a Portugal bastantes coleccionadores, eu movimentei-me bastante e desloquei-me às grandes iniciativas, como a Bienal de Veneza e outras. Quase todos os artistas portugueses que foram por mim expostos participaram nesses eventos através da visibilidade que a galeria lhes proporcionou.
Havia um protocolo tripartido entre a Secretaria de Estado da Cultura, a Fundação Gulbenkian e a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), em cujo pressuposto assentava a noção de parceria com as galerias para promover a arte portuguesa no estrangeiro. Nós participaríamos com um quarto da despesa geral e as instituições com o restante, em partes iguais. Progressivamente, o apoio do acordo tripartido foi mudando, ou seja, a galeria passou a ter um encargo sistematicamente muito superior às comparticipações oficiais. Ora, nós estávamos a participar num programa de internacionalização de artistas portugueses a médio ou longo prazo e tínhamos de ter algum retorno. Tinha de haver alguma sustentabilidade financeira para esta aventura internacional, tanto ao nível das vendas no estrangeiro como em Portugal. A estratégia adoptada não passava só pela participação em feiras, mas pela miscigenação com uma programação com artistas estrangeiros de grande qualidade de maneira a solidificar a imagem da galeria e, de certa forma, legitimar a presença dos artistas portugueses que fazem parte da nossa programação. Inclusive, na participação de feiras no estrangeiro em que participamos, granjeámos, pela qualidade da nossa selecção de artistas, uma notoriedade que nos permitiu que a nossa presença estivesse incluída na área cutting edge. Somos uma galeria de referência e, por isso, convidada sistematicamente para feiras tais como Los Angeles, Basileia, Zurique, Tóquio, Yokohama, Madrid. Fazemos parte daquelas galerias que «abrilhantam» as feiras, estando sempre muito bem colocada, um lugar que se conquista por direito, fazendo parte das novas tendências. A galeria esteve presente em todas as secções mais trendy das feiras de arte.
Conseguimos colocar a maior parte dos artistas no circuito internacional. Aqueles que trabalharam connosco nos anos 80 e que não estão hoje nesse circuito, é porque não quiseram estar, ou não tinham capacidade ou vocação para assumir as exigências de participar nessa dinâmica internacional. Todos os outros aproveitaram isso e, se formos analisar as exposições da galeria e os artistas que nelas participaram, percebe-se que foram coincidentes com a nossa presença em feiras internacionais. Aparentemente, teríamos um mercado mais alargado porque esses artistas ficavam a trabalhar com galerias locais; mas, na segunda vez que voltámos a essas feiras observei que abríamos uma porta, mas fechávamos outra atrás. Isto começou a acontecer sistematicamente.
Numa altura em que os artistas passaram a ser reconhecidos e «estabelecidos», a galeria precisou de ter o seu retorno. Porque enquanto são «artistas emergentes», valem o que valem; quando são «estabelecidos», valem o que conseguiram acumular e adicionar ao seu curriculum; e, quando chegou a altura de as instituições, nomeadamente portuguesas, adquirirem esses valores que eram já reconhecidos, fizeram-no directamente junto dos artistas que, dada a crise económica, acharam que ganhavam mais vendendo directamente às instituições do que através da galeria. Não se aperceberam de que estavam a «dar-um-tiro-no-pé» e que estavam a enfraquecer uma galeria que sempre os tinha ajudado e que lhes tinha dado visibilidade. A gestão de «mercearia» contabilística de «deve e haver», conduziu a que ganhassem num sítio mas perdessem noutro. Aconteceu com a Comissão de Compras de Serralves, a FLAD, o Centro Cultural de Belém (que encomendou algumas obras para a nova sede), a Culturgest e a própria Gulbenkian que começava a expor os artistas que trabalhavam aqui mas que lhes comprava directamente. Foram situações paradoxais de uma nova geração de gestores destas instituições que debilitaram não só esta, como várias outras galerias e que debilitam principalmente o «sistema de mercado de arte» em geral como teria acontecido em qualquer outra parte do mundo.
De conversas que tive com estrangeiros, ora pela minha participação em colóquios ora com outros que vieram a Portugal, não percebiam como era possível que os artistas vendessem directamente, furando o esquema de exclusividade que tinham com as galerias. Achei então que, tendo investido consideravelmente tempo e dinheiro, tendo provado ter sido um dos parceiros mais dinâmicos da internacionalização com inequívocos resultados e apercebendo-me sistematicamente das maiores dúvidas existenciais por parte das instituições sobre a co-participação neste programa (a FLAD que tinha liderado a sua implementação argumentava a seu favor contra as indecisões da Gulbenkian e a SEC, através da gestão de Santana Lopes, teimava em retirar-se do projecto). Em vez de aumentarem o financiamento para duas ou mais feiras, reduziram-no. Essas contradições (a paradoxalidade aconteceu mais tarde quando em plena campanha de promoção de Portugal em Espanha ao tempo de António Guterres o Acordo Tripartido, e em simultâneo, ter enviado uma Circular confirmando a decisão de excluir a Feira Arco_Madrid como um dos locais estratégicos de internacionalização da arte portuguesa!!!!!) contribuíram para que denunciasse unilateralmente a minha participação no âmbito do Acordo Tripartido ao qual decidi nunca mais apelar. Uma representação exclusiva de artistas não tinha o retorno que eu achava que devia ter, dada a falta de comprometimento, por parte desses artistas, na dinâmica que tinha criado e na visibilidade que lhes tinha proporcionado. Era uma atitude absolutamente contrária ao esforço financeiro que fazia pois eu obrigava-me sistematicamente a apresentar esses mesmos artistas nas feiras, acompanhá-los em eventos no estrangeiro, implementando cooperações institucionais e incluí-los numa programação regular.
Por outro lado, sempre tive uma visão (muito) crítica em relação ao trabalho artístico; gosto de questionar, como atitude pessoal, a produção artística e desejo que os artistas se questionem sobre os seus próprios trabalhos. Houve uma altura em que isso parecia não ser mais possível. Eu teria de defender, a qualquer custo, o trabalho desses artistas e não havia debate sobre a orientação do trabalho de alguns deles, enquanto que, com artistas estrangeiros tinha essa prática permanente pois alguns desses projectos na galeria foram feitos nesta sala onde nos encontramos a falar. Fazíamos brainstorm, eles deixavam os projectos, iam-se embora, eu ficava a fazê-los. Com alguns dos artistas portugueses, com a sua metodologia, que apesar de tudo respeito, isso não era (foi) possível. Tinha de aceitar, sem discussão, o trabalho que eles faziam, até porque eram mais artistas de atelier e não tanto de projecto. Isso criou uma forma de trabalho que, pessoalmente, me desinteressou. Também queria ser livre ao ponto de poder fazer uma programação mais crítica, eventualmente dar oportunidade a artistas para apresentarem um corpo-de-trabalho aqui de modo a proporcionar-lhe depois partirem para outro corpo-de-trabalho, mesmo que não fosse apresentado aqui, mas noutra galeria, em museus, em exposições colectivas, em instituições internacionais, etc.
Houve uma altura em que, verdadeiramente, senti que era chegado o momento de ter um modelo diferente, em que eu próprio tivesse mais liberdade na programação, libertando-me do estigma de ter de expor sistematicamente artistas que, em determinados momentos das suas carreiras, não tinham trabalho que minimamente me interessasse. O interesse para com o trabalho que pudessem fazer no futuro, permitir-me-ia ter a liberdade de incluí-los ou não na minha programação. Além de que também me tinha distanciado das preocupações estéticas e daquilo que estava subjacente ao trabalho de alguns. Se pontualmente posso achar interessante uma obra ou outra, porque conheço, ao pormenor, as razões, os modelos, as motivações para o fazerem, gosto de ser crítico (no bom sentido) em relação a esses trabalhos. Portanto, também eu achei que não estava coincidente num determinado momento com o trabalho produzido e, principalmente, com os pressupostos da carreira de alguns artistas.
Achei mais interessante mudar o rumo da galeria e começar a assumir as minhas opções, não só através de exposições individuais, de trabalhos de artistas que podia convidar para fazer uma determinada exposição, como inclusive colocar as minhas próprias preocupações e os temas que gosto e de me dedicar e elaborar uma programação mais de comissariado, sempre em colaboração com os artistas. Nunca mostrei aqui na galeria nenhumas obras sem a cumplicidade dos respectivos artistas, a não ser do Marcel Broodthaers, que já tinha falecido, ou do Andy Warhol. Todas as obras foram pedidas directamente para participarem nas exposições comissariadas por mim, o que me deu uma nova dinâmica e solidificou uma prática que me tem entusiasmado bastante.
O Luís Serpa não se enquadra no perfil de um galerista. Nunca pensou ser director de uma instituição ou comissário que trabalhasse a nível institucional, fazendo programação com os artistas?
Tenho-o feito, porque fui comissário para a exposição Je Est Un Autre, exposta na galeria e em Serralves, comissariei a exposição Múltiplas Dimensões para o CCB, o ZOOM! Arte na Índia Contemporânea para a Culturgest e isso provocou alguma perplexidade: como é que um galerista consegue ser comissário de exposições em instituições públicas? No entanto, em 1991 criei O Museu Temporário, um projecto de engenharia cultural, de modo a dividir a minha actividade. Uma coisa é dirigir a galeria, cada vez mais tendencialmente cultural e, outra O Museu Temporário, em que me assumo mais como gestor de conteúdos culturais. Isso permitiu que fizesse alguns projectos na Expo‘98 ou que assumisse o papel de comissário noutras exposições que foram feitas sempre através do Museu Temporário e não da galeria. Porque acreditava que Portugal ia entrar num capítulo em que as indústrias da cultura iriam florescer. As experiências da Expo ou as internacionais levavam a que houvesse cada vez menos Estado e que, portanto, pudesse haver encomendas a comissários individuais, independentes, autónomos, de maneira que programassem para as instituições. Ora, em Portugal, deu-se exactamente o contrário. Houve uma asfixia das indústrias da cultura através do aparecimento de um poder institucional cada vez maior. A nível do Estado, este apareceu a organizar e a fazer acção cultural. Ora, sou absolutamente contra isso. A actividade do Instituto das Artes ou do IAC, na altura em que este comissariava exposições, é perfeitamente contrária ao espírito que entendo que deveria ter. As indústrias culturais foram asfixiadas pelo próprio poder institucional, o qual via nos comissários independentes um adversário. Encontro a maior resistência na aceitação de alguns dos meus projectos. Percebe-se porquê! É difícil abrir as portas a um conceito de autonomia crítica face ao pensamento politicamente correcto das/nas instituições.
Houve uma implosão cultural a nível regional e autárquico que tendo recebido, através do Quadro Comunitário II, verbas para recuperar edifícios, para fazer centros culturais, passada que estava a fase do saneamento básico o fizeram sem direcção própria, sem programação própria ou articulada em rede nem em parcerias (nem públicas nem privadas), sendo geridas pelos próprios autarcas. Logo, nunca foi possível fazer nem descentralização nem regionalização, com base na criação de centros de arte contemporânea com personalidade e individualidade.
Na altura, aquilo que pensava em termos teóricos era que o Estado devia ser o grande coordenador de uma Parceria Estratégica que envolveria duas instituições fundamentais: as autarquias e as universidades. Hoje, as autarquias estão falidas e as universidades também e o Estado praticamente não tem capacidade de resposta para responder a alguns dos mais elementares desafios quanto mais o de servir como coordenador desse projecto!
Como não houve regionalização, o poder autárquico não conseguiu redefinir-se a partir da Lei das Finanças Locais em vigor, agora em discussão, para lhes dar mais autonomia; e não tendo sido possível a descentralização por falta de verbas e pela falência total nas verbas para a cultura, não se permitiu que o movimento das indústrias culturais se desenvolvesse, e ele é hoje um nado-morto.
Começa-se agora a falar num outro modelo: as indústrias criativas que, integradas no Plano Tecnológico, e segundo as boas ou novas práticas culturais, podem constituir-se como o grande motor de desenvolvimento das cidades. A arquitectura, as artes visuais, a moda, o design, a rádio, a Internet, a televisão, as artes performativas e de entretenimento, o software educacional estão congregadas no novo modelo pela sua pertinência comercial indexado pela globalização. Durante décadas foi importado o modelo francófono das indústrias culturais, muito apoiada na experiência de Malraux, dos anos cinquenta. Porque sempre tivemos esta absorção do espírito francófono para a gestão do modelo cultural, hoje, com o desenvolvimento da economia, com a globalização e com as experiências muito bem sucedidas de cidades como Londres, Vancouver, Toronto ou de outras, as indústrias criativas têm a possibilidade de contribuir decisivamente para o desenvolvimento como é provado agora pelas notícias de estudos realizados pela Comissão Europeia, pelos valores com que a cultura contribui. Visto que, hoje, já não competem entre si os países nem as regiões, mas as cidades, a inserção das indústrias criativas na renovação urbana, principalmente em zonas pós-industriais, tornou-se prioritária. Assim é com é o caso do Chiado em Lisboa que inclui um edifício para as indústrias criativas ou no plano estratégico que propus para o Ginjal em Almada (no qual colaboro com um arquitecto).
Basicamente, o Estado poderá ficar remetido aos seus próprios equipamentos — aos museus, às bibliotecas, aos arquivos —, mas a acção cultural terá de ser deixada livre para que os criadores a façam. Para isso, e na óptica de um conceito relativo á competência do Estado, este deverá criar os mecanismos de desenvolvimento, através de instrumentos específicos, entre eles, a Lei do Mecenato, deduções ao IVA para empresas, incentivos no IRS, de maneira que as indústrias criativas se possam desenvolver. Não me agrada ver o Estado, ele próprio, a organizar a acção cultural, através do apparat das suas próprias estruturas, a fazer exposições ou outros eventos. Devem ser libertados disso; devem ter outra função. Sou absolutamente contra ver o Instituto das Artes paralisado porque tem uma Bienal de Veneza, ou de São Paulo, para organizar. Não compete ao Estado ser o produtor dessas iniciativas — deve ser o incentivador, o parceiro estratégico para que essas coisas aconteçam. A nível do desenvolvimento, é bom que haja menos Estado, é mau que haja menos investimento e que não possa haver uma descentralização capaz de criar centros de arte contemporânea com pulsar próprio, pessoal, com carácter, e levar para fora dos centros uma produção artística que poderia funcionar muito bem em termos de residências e com projectos específicos. É assim que gostaria ver Portugal desenvolver-se, porque acho que é o modelo que melhor poderá contribuir para que o cenário mude, para lá deste centralismo macrocéfalo que o Estado e as grandes empresas tem tido.
Como avalia a acção do Instituto das Artes? Que modelo deveria seguir o Instituto das Artes em termos de actuação no meio artístico?
O organigrama do Ministério da Cultura, obviamente, tem de ser refeito. Isso tem acontecido com outros institutos, como o IPPAR, o ICAM ou o IPM. Creio que continua a grande nebulosidade em relação ao Instituto das Artes (IA). Com as funções que lhe tem atribuídas não faz sentido, neste momento. O seu trabalho pode muito bem ser feito por uma Direcção Geral. Devo confessar que o presente Governo é o único com o qual não tenho contacto a nível de relações nem institucionais nem de trabalho. Estou expectante, mas não encontro razão nenhuma para estar entusiasmado com a acção do Ministério da Cultura.
Que opinião tem do esforço que está a ser feito para a internacionalização da arte portuguesa?
Se estivermos de acordo com a apresentação da arte «corporativa», concordamos com o modelo de internacionalização. Mas a nível das artes, a única coisa que vejo é a presença na Bienal de São Paulo e na Bienal de Veneza. O próprio Acordo Tripartido, para mim, é amoral, nem sequer é imoral. Ou seja, não faz sentido. Não faz sentido o Estado estar agregado a duas Fundações com um regulamento como aquele que o define.
A internacionalização que se procura é mais a nível institucional, pelo prestígio ou pela notoriedade que possa haver em Portugal de eventos capazes de pôr o país no mapa, ou de fazer eventos emblemáticos, como a sede da Colecção Berardo ou do Hermitage, ou de grandes festivais como o Rock In Rio. É aí que os Governos e as Empresas têm apostado na marca «Portugal», não exactamente ligando os criadores e as pessoas que estão no meio com know-how, proporcionando-lhes os mecanismos para a internacionalização, mas unicamente através de um grande chapéu mediático. Mas, verdadeiramente, aquilo que faz a internacionalização, a nível das artes, não é nada disso. Não é por Portugal organizar um Campeonato Europeu de Futebol ou por ter um Super-Festival Rock que consegue, eventualmente, pôr esses «artistas» no circuito internacional. É um trabalho muito mais de «sapa», muito dentro dos canais próprios, de continuidade e de empenho desses agentes do que fazer estas coisas assim, pensando-se que, se Portugal aparecer como país com eventos, tudo o resto acontecerá. É um trabalho muito especializado, muito estratégico, que tem de ser feito por experts, por quem está no meio artístico, principalmente, para quem ganha credibilidade.
Conseguimos a programação que conseguimos, aqui na galeria porque, penso, havia um trabalho reconhecido internacionalmente como muito válido e, principalmente, sério. É um modelo considerado, até por muitas outras galerias e por opinion makers internacionais, como exemplar: a galeria conseguir fazer projectos de referência que muitas galerias grandes não conseguiram. Em cerca de 200 artistas, só um ou dois é que não quiseram expor aqui. Isso deu-me muita força e responsabilidade. A partir daí, trabalho e invisto aquilo que tenho. E o que não tenho…
Qual considera ser o actual estado do mercado galerístico português, incluindo o esforço pela presença em feiras internacionais?
Pela minha experiência, não percebo como é que é possível as galerias portuguesas estarem presentes nas feiras em que estão a participar, pelos custos que envolve. Não sei qual é o retorno que têm, mas cada uma das galerias saberá. Começa a haver alguns artistas no circuito internacional, mas creio que 80 por cento desse esforço se deve aos próprios artistas que conseguiram, de alguma maneira, furar esta barreira. É bom que as galerias continuem a participar em feiras; mas não vejo como é possível participar nesse esforço de internacionalização sem um mercado de arte sólido em Portugal!
Tenho pena que o actual modelo de apoio às artes exclua o mercado das artes. É completamente paradoxal e contraditório em relação àquilo que está no programa do Governo, a nível do apoio às indústrias criativas, no qual o mercado de arte e das antiguidades é uma área elegível. Não se percebe como é que simultaneamente se aprova um plano de apoio às indústrias criativas e, logo a seguir, vem um regulamento de apoio pontual ou plurianual às artes e que exclui o mercado das artes. Parece haver dois mundos incomunicáveis dentro do Governo e em que o Ministério da Cultura não participa.
Em Portugal continua a haver esta dicotomia de que as artes não geram nem são um contributo para a economia. Por exemplo, o Programa Operacional da Cultura — que não privilegia entidades privadas com fins lucrativos, beneficia apenas aquelas sem fins lucrativos em parceria com entidades públicas. Esta regulamentação acaba por ser um grande handicap para o desenvolvimento da cultura em Portugal porque é uma atitude autofágica. Cito o caso do POSI (Programa Operacional para a Sociedade de Informação), com verbas da Comunidade Europeia. Quando são abertos os concursos, por exemplo, para incentivo a conteúdos culturais on line, verificamos a lista dos candidatos elegíveis: 90 por cento são entidades públicas. Quando se fala do Programa Operacional da Cultura (POC), em parcerias público-privadas, o grau de realização do POC, provavelmente 98 por cento são para entidades públicas. As verbas atribuídas ao apoio às artes, são iniciativas, muito provavelmente, em parcerias com autarquias ou outras entidades públicas. Isto é, as verbas que vêm da Comunidade Europeia, que deveriam servir para os criadores ou para as estruturas culturais autónomas, aparecem para viabilizar os projectos do Estado. Essa massa financeira nunca chega à sociedade civil: é o próprio sistema que gere essas verbas. Relativamente ao caso, por exemplo, das Capitais da Cultura, a determinada altura o Programa da Cultura 2000 (face aos programas de apoio comunitários, como o Caleidoscópio, Leonardo da Vinci, entre outros que premiava os agentes culturais) acabou com os apoios pontuais para criar uma iniciativa mais concentrada que se chama «Capital da Cultura», aquilo que Portugal desenvolveu com total insucesso nos últimos anos, no Porto, em Coimbra, Faro. Foi uma má utilização dos dinheiros comunitários na gestão de eventos culturais. O flop, confirmado agora pela decisão governamental de acabar com esse modelo, os buracos financeiros descobertos, demonstrados pelo diletantismo de gestão demonstrada e a incapacidade de criar antecedentes sedimentando equipamentos e elaborando programações próprias, foram completamente controlados pelo próprio Estado que demonstrou, assim, a sua completa incapacidade de gestão de projectos culturais através de estruturas inadequadas para o efeito. Os criadores foram, mais uma vez, marionetas do sistema institucional, para provar que este ou qualquer outro Governo podia apresentar trabalho, nomeadamente na revitalização das cidades. Foram anos perdidos com a utilização descabida de verbas.
O estado do mercado é esse, em que as instituições não têm verbas para intervir e toda a disponibilidade financeira proveniente do mecenato é canalizado para as próprias iniciativas do Estado criando-se deste modo um vazio enorme que impede o são desenvolvimento da criação artística. Logo, o mercado sofre o resultado e as inflexões de iniciativas voluntaristas de meia dúzia de coleccionadores, que eventualmente aparecem aqui e ali e que têm uma atitude pontual, mas não reguladora. O próprio Estado não a tem!
Embora eu defenda que o mercado privado deve prevalecer sobre o institucional, mas não dissociados. Não se pode dizer: «O mercado privado é que é responsável pelo bom ou mau desempenho das artes e das galerias»… Isto para voltar à questão do apoio às artes excluir o mercado das artes.
Há uma má consciência em relação à arte e ao mercado que continua a perdurar em Portugal, muito arreigada a conceitos ou preconceitos que estão fora de uso. Essa má consciência não permite criar um modelo e uma consciência colectiva de direccionar todos os esforços para o grande arranque. Portugal produziu um sistema entrópico, embora haja excelentes criadores. De facto, não vivemos nenhuma crise a nível de criação. O facto de viajarmos, de termos contacto com teóricos e com gente da cultura a nível internacional e o facto de os artistas terem acesso aos novos meios de comunicação, leva-me a considerar que não temos nenhuma crise de criatividade. Não podemos mais ser considerados epígonos de nada.
Hoje, as coisas boas e melhores acontecem em qualquer parte do mundo. Podem acontecer em Portugal, como na Índia ou na China. Verdadeiramente, os artistas já não consideram um obstáculo viver em Portugal para fazer um trabalho com pertinência internacional. Mas a nível de programação, de perfil institucional, mesmo a nível de perfil das galerias – que hoje já têm uma prática muito mais aberta do que aquela que havia nos anos 80 –, continua difícil encontrar uma dinâmica capaz de colocar Portugal, nomeadamente Lisboa, na dinâmica que havia, por exemplo, em Londres, quando decorreu a feira de arte Freeze. Havia quatro feiras e quatro leilões simultaneamente, prémios de arquitectura transmitidos em directo pela televisão, exposições de arquitectura e de artes visuais; isto é, havia uma dinâmica criada por um evento catalisador. Conseguiu, em quinze dias, tornar-se o centro do mundo artístico. Portugal tem de fazer um esforço muito grande de concertação estratégica, de maneira que as diversas entidades possam, de alguma maneira, concentrar esforços em eventos capazes de se constituir como multiplicadores de sinergias e, simultaneamente, aproveitar essa dinâmica para poder internacionalizar os seus valores.
Quando vamos a Nova Iorque ou a Londres, vemos projectos absolutamente inovadores acarinhados pela imprensa, pelo poder político, pelo mercado. Isso é que constitui os grandes momentos inovadores, não é esta tendência portuguesa de sistematicamente endeusar e transformar em ícones valores populistas. Tem o seu valor, mas são atitudes perfeitamente redutoras.
Como vê a situação da ARTE LISBOA - Feira de Arte Contemporânea?
Tenho sido defensor de que a Feira de Arte de Lisboa tem de ter um sistema misto. Dada a dimensão do mercado privado, só o modelo direccionado para ele não funciona: tem de ser simultaneamente um evento cultural. Tenho defendido e proposto, não com muito sucesso, que haja sempre um núcleo cultural no seio da Feira capaz de atrair artistas emergentes e, de alguma maneira, se institucionalizar a nível internacional como um local de descoberta de novos valores. Tem de ter um qualquer perfil que a diferencie de uma simples feira de arte. Enquanto isso não acontecer, será sempre uma feira secundária ou terciária, incapaz de se afirmar internacionalmente. Satisfaz mal os interesses nacionais e ainda não conseguiu encontrar um modelo capaz de aliciar tanto as instituições públicas — que se poderiam comprometer a adquirir obras como na ARCO em Madrid que consegue mobilizar as instituições, as empresas públicas e privadas, os museus, o mundo do investimento — como os investidores privados para que acudam à feira.
Porque a feira é um dos exemplos típicos daquilo que define as novas geografias cosmopolitas. Poderia ser um grande elemento de cosmopolitismo, capaz de gerar uma certa dinâmica, com a ExperimentaDesign ou a Trienal de Arquitectura, que podem sedimentar públicos e, principalmente, trazer a Portugal opinion makers, pessoas especializadas, imprensa e criadores capazes de criar aqui e de apresentar os seus projectos inovadores em primeira mão. A feira precisa de ganhar esse élan, essa consciência que neste momento ainda não consegue ter. Tem uma visão meramente mercantilista do evento, como qualquer outra feira no panorama que a FIL organiza. É uma iniciativa muito específica que tem de ser gerida com muita argúcia. Enquanto não conseguirem fazer isso, será o modelo que é. Tenho pena que não consigam mudar esse modelo.
Cada vez mais os coleccionadores saem do anonimato, sendo conhecidos do grande público. Como analisa este fenómeno?
São os próprios coleccionadores que provocam isso. Intervêm no mercado com a necessidade de ter grande visibilidade social e mediática e a imprensa pega facilmente neles como elemento de notícia, dada a precariedade das verbas gastas no mundo da arte em Portugal. Se apreciarmos o valor da Colecção Berardo e das obras individualmente, e se virmos os preços que algumas obras atingem nos leilões em Nova Iorque ou em Londres, facilmente se percebe que a arte contemporânea vive abaixo dos limiares da pobreza em Portugal, apenas com valores simbólicos. Portanto, é fácil com poucos recursos fazer um grande figurão. É o que se passa em Portugal. Consegue-se fazer uma grande figura comprando «nada». Mais uma vez, existe o apoio do mercado privado a artistas e obras que não têm qualquer valor em Badajoz. Faz-se uma mitificação de determinados artistas e de determinadas obras que não correspondem em nada às capacidades intrínsecas das obras de arte na esfera internacional. Essa pertinência internacional, que pode nascer em qualquer sítio, pode aparecer em qualquer momento mas acho que há uma grande falta de cultura por parte de quem compra para poder justificar algumas aquisições. No caso português foram verdadeiros epígonos.
Se os artistas já estão muito informados, se há críticos mais informados, se os galeristas portugueses, apesar de tudo, já começam a perceber alguma pertinência na obra de alguns artistas e de obras que trazem para as suas programações — e as programações das galerias portuguesas têm vindo a melhorar substancialmente —, a nível do coleccionismo os critérios de aquisição continuam a ser muito incipientes. Movem-se por critérios que não são técnico-culturais. É preciso estar muito dentro do meio para se poder fazer aquisições e perceber as dinâmicas do mercado, para perceber que, em alguns casos, se está a comprar obras ou artistas meramente fruto do acaso e do imediatismo. Isso faz parte de uma certa dinâmica que se cria à volta de algumas galerias ou de alguns artistas, com a cumplicidade, também, de algum jornalismo cultural mas que pode não gerar uma credibilidade acrescida para esse trabalho. Mas esse é um factor de risco do mercado privado, coisa que em Portugal assume a perversidade de ser seguida, em alguns casos e com o mesmo critério, por algumas instituições. Quando há instituições que expõem artistas que ainda não o são (ex: Artistas ao décimo mês), jovens artistas emergentes que são incluídos em colecções de empresas apenas com uma única obra, entre outros, percebe-se que há uma movida muito pouco sustentada.
É pena que as instituições não se ponham no seu lugar certo. Um Centro de Arte Contemporânea é uma coisa, um Museu é outra. A compatibilidade que os anos 80 promoveram e proporcionaram, entre Arte e Dinheiro e Arte e Mercado, foi boa. Não vale a pena andar para trás. Mas isso não pode ser o álibi para que a viabilidade dos museus passe por esse cosmopolitismo supérfluo que invadiu as novas dinâmicas culturais. Os museus tentam, por todos os meios, pertencer a essas dinâmicas, mas com programações de carácter duvidoso. É altura de reflectir sobre isso.
Em Portugal, faz falta uma crítica acutilante em relação às programações, tanto das galerias como dos museus. Não vejo, da parte dos críticos, acutilância para chamar-à-pedra os curadores e os directores de museus que fazem programações pouco consistentes. A crítica de arte é muito comprometida com o sistema.
A que se deve isso?
Deve-se a cumplicidades geracionais, profissionais, ao facto de o mercado de emprego ser muito pequeno, de estarem sempre na esperança de que possam ser incorporados no sistema e de não poderem perder a oportunidade de colaborar hoje aqui, amanhã ali.
Sente que há uma grande diferença entre os anos 80 e o período posterior?
Os anos 80 constituíram-se como um período que possibilitou alguns desses compromissos, os quais deram muito maus resultados em termos éticos, por parte dos protagonistas do sistema cultural privado (os críticos, os coleccionadores, as galerias) e do sistema institucional (os museus, os curadores e os comissários). O artista viu-se envolvido nesse sistema, tentando lidar com todos eles de uma maneira na qual não impôs a sua estratégia. E começou a viver de estratagemas. Aí, mudo o paradigma da galeria e não quero entrar nesses esquemas nem ser cúmplice de algumas faltas éticas que foram muito evidentes nos finais dos anos 80 e que se desenvolveram nos anos 90. E agora, é a grande confusão em Portugal. As incompatibilidades de alguns protagonistas que ocupam cargos de responsabilidade na hierarquia do Estado deveriam ser reavaliadas.
Os críticos deveriam ser mais acutilantes a nível estético. As exposições devem ser criticadas com austeridade e não com complacência. É um país em que não existe uma crítica teórica forte e actuante sob o ponto de vista estético em relação às programações das instituições. O argumento tem sido sempre: «Não gosto, não falo» ou «Só falo daquilo que gosto». Não aparecem críticas negativas. A não ser episódios de ajustes-de-contas em lugar público.
No livro de apresentação dos Vinte Anos da Galeria Cómicos/Luís Serpa Projectos consta o comentário «É certo que não mudei o mundo, mas a verdade é que o mundo também não me mudou.»
Isso foi dito por um cliente e amigo meu, a propósito de um outro cliente que o acompanhava e que queria um desconto numa obra que pretendia adquirir. É uma atitude que se institucionalizou e que consiste em transformar a arte num objecto com características de mercadoria artística. Disse-lhe que não fazia descontos porque não estou habituado a isso. «Tenho um preço que o senhor poderá dar ou não» retorqui, comentando: «Se vou comprar um automóvel: se tenho dinheiro para aquele modelo, muito bem; se não, paciência. Não compro!» O comentário foi: «O Luís, com esse conceito ético não muda o mundo; mas, de facto, o mundo não o muda a si. Porque conheço-o há muitos anos e continua igual».
Sou galerista enquanto outros são marchands. Têm perfeita legitimidade de ser art dealers mas eu sou galerista. Defendo um projecto, uma ideia de mercado primário e não prescindo dele vendendo obras por-debaixo-da-mesa. Não pratico mercado secundário quando estou em crise. Defendo os meus artistas em especial os artistas emergentes, atribuo-lhes uma cotação em relação às expectativas que tenho para com o seu trabalho e não posso, de maneira alguma, prescindir desses princípios. Por uma questão de perfil, de ética ou de simples estratégia comercial, se quiserem.
Soube, entretanto, de um colega que vendeu uma exposição inteira por cinquenta por cento do seu valor. Não percebe que acabou de «matar» o artista, de «matar-se» a si próprio e que comprometeu definitivamente o mercado de arte e todos os seus colegas. Um galerista ou o artista que vendam sistematicamente a cinquenta por cento, são pessoas que não têm qualquer consideração pelo seu trabalho. São apenas mercadores de objectos artísticos que tem o valor de mercado assente única e exclusivamente na relação entre oferta e procura. Não percebo o que estão a fazer na vida artística. Um galerista que o queira ser e que decida defender os seus artistas e o mercado primário, atribui um valor simbólico aos trabalhos e tem de o manter, custe o que custar.
O mercado aparece, também e agora muito com «franco-atiradores». Não são coleccionadores, são ajuntadores, fazem dealing e mercado secundário. Compram nas galerias e vendem logo a seguir uns aos outros. Há muita produção artística e pouco mercado — entre a oferta e a procura há uma grande diferença.
O que é que o motiva?
É uma ideia-de-arte, de postura cultural, um modelo que gostaria fizesse doutrina e mantivesse uma ética impoluta (provavelmente impossível). Considero que há vários valores na vida que marcam a personalidade das pessoas sendo a honestidade intelectual aquele que mais me impressiona e admiro. Por esse princípio dou a vida! Por esse motivo estive em ruptura com artistas a determinado momento das suas carreiras. Não podia ser cúmplice.
Atribuem-me virtudes e defeitos: O pior é ser teimoso; o melhor é ser perseverante. Acredito naquilo que faço; não quero fazer golpes de rins para sobreviver na vida. Podia viver melhor, mas provavelmente não dormia por isso melhor durante a noite.
Há um modelo que persigo e que gosto de transmitir nestas conversas. Tenho clientes desde há vinte e dois anos e que vêm aqui nessa perspectiva, enquanto outros não conseguem ser meus clientes porque eu também não conseguiria ser o galerista deles. Em Portugal tem sido mais difícil transmitir estas ideias do que no estrangeiro.