Textos sobre duas obras de Miguel Palma, publicadas no catálogo Initiare – Colecção de Arte Contemporânea IAC/CCB – Aquisições 1997-1999 (pp. 67-69). Lisboa: Instituto de Arte Contemporânea, Instituto de Arte Contemporânea, 2000.
Carbono 14, 1994
Em Carbono 14 (1994), Miguel Palma sobrepõe numa caixa-vitrine de grandes dimensões vários estratos de terra e diferentes miniaturas, assim construindo uma realidade arqueológica que pode ser observada pelo espectador. Não obstante a evidente tridimensionalidade da sua peça escultórica diríamos que na sua qualidade gráfica ela se assemelha a um registo de estratigrafia. As faces do expositor estão visualmente próximas das secções transversais dos desenhos arqueológicos, sendo possível através delas analisar ao pormenor a ordem de formação e a composição física dessas várias sequências. Depostos entre as diferentes camadas, estruturas arquitectónicas e vestígios de sistemas de saneamento básico fazem a sua aparição, à mistura com alguns veículos automóveis. Elementos que funcionam como sinais do século XX, vestígios do presente que Miguel Palma investe de uma dimensão arqueológica. Um tal processo, a remeter idealmente o presente para o passado, denota um fascínio do tempo e dos seus efeitos que é recorrente na obra do autor, e que dá continuidade a algumas das suas pesquisas realizadas ao longo da década de 90. A este título refira-se o projecto Cemiterra-Geraterra (1991-2000), concluído no presente ano quando Miguel Palma resgatou no jardim da Fundação Calouste Gulbenkian um paralelepípedo enterrado dez anos antes, que guardava no interior um globo terrestre. Aqui como em Carbono 14, mais do que constatar o processo de decomposição física dos materiais trata-se de explorar simbolicamente a ideia e a percepção do curso do tempo. A imagem do globo terrestre enterrado convoca, entre várias ideias inquietantes, a de uma hibernação do mundo. Por sua vez o desenterramento do conjunto estimula uma interrogação quanto ao seu futuro. Em Carbono 14 a dimensão futura é também aflorada. Na superfície, o arado que remexe a terra fértil parece marcar uma referência à futura ocupação do espaço. Faz-nos pensar no seu uso para a exploração agrícola, facto que certamente contraria a tendência de urbanização na sociedade actual e que entreabre perspectivas de reflexão. As pistas de Miguel Palma funcionam como visualizações de possibilidades que o tempo e o seu registo histórico poderiam, na sua progressão, considerar. Assim, quer se trate de um passado remoto que tenha engolido o presente, ou de um futuro que os rumos da actualidade vão tornando improvável, as camadas de tempo que o autor selecciona e expõe são visões, fragmentos virtuais de uma História pessoal e colectiva a descobrir.
Avião, 1997
Miguel Palma explora frequentemente experiências de reconhecimento quando transpõe para o contexto artístico situações do mundo real. É o que acontece em Avião (1997), onde através de um modelo de aeronave e de uma paisagem miniaturizada ele simula a percepção do mundo exterior numa viagem aérea. É um dispositivo simples, mas que na sua virtualidade procura abranger, decompondo-o, o vasto universo físico e psicológico experimentável na viagem. Assim, por exemplo, o efeito que a distância exerce sobre a nossa percepção é sugerido pela escala reduzida da paisagem, cujo desfile num sistema volante parece traduzir, não sem humor, a sensação de deslocamento exterior experimentada quando idealmente nos situamos num ponto fixo, em redor do qual tudo se move e organiza. É pelo desordenamento desse eixo e das suas expectativas que Miguel Palma problematiza, mediante apontamentos subtis, algumas das certezas funcionais da cultura contemporânea. A monotonia da paisagem, figurada a partir de um relevo sempre plano e com uma variação mínima de elementos, contraria a noção de mudança associada à deslocação. A ideia de abertura a novos horizontes de vida, novas paisagens, novas culturas, outros mundos, motivações implícitas ao ideal da viagem, são negadas pela dinâmica da repetição, multiplicada com o auxílio da projecção em vídeo da imagem do trajecto. Ao movimento contínuo corresponde uma deslocação ilusória, que torna absurda a viagem. Como se ao viajante moderno fosse negado qualquer indício do enriquecimento espiritual que associamos à transposição temporária dos nossos limites quotidianos. Escolhidos segundo uma lógica de consumo, os destinos da viagem acenam para lá de uma distância preenchida não de diferenças mas de um indistinto reconhecimento, que se vai esbatendo e olvidando. O tempo, vencido pela rapidez metódica dos transportes, divorcia-se da demora que permite as memórias e da fruição que predispõe à experiência. O efeito caricato, em Avião, dessa espécie de contingência do aparelho papa-paisagens transportando um viajante cego aos espaços e insensível aos tempos que percorre põe a nu a futilidade implícita de uma circulação assente na massificação dos circuitos. Daí que um sentimento de perda, envolva esta cristalização do imaginário, de uma cada vez mais impossível relação singular com os lugares. Avião não se limita, porém, a interrogar os paradigmas do progresso e mobilidade alcançados neste século. O processo de desmitificação encenado por Miguel Palma vai assinalando ironicamente o sentido perverso das representações unitárias e estáveis em que encerramos o princípio da realidade e salientar em contrapartida o carácter relativo e contingente dos nossos pontos de vista.