Manuel Santos Maia

Entrevista

Entrevista a Manuel Santos Maia.

Publicada na revista Arq./a: Arquitectura e Arte, n. 22, Novembro/Dezembro 2003, pp. 86-89. ISSN: 1647-077X.

Nascido em Moçambique, Manuel Santos Maia tem trabalhado sobre a realidade dos «retornados» durante o período colonial português, estendendo a sua abordagem à condição dos «deslocados» na sociedade contemporânea. Com uma extensa lista de materiais, onde se incluem fotografias de álbuns familiares, selos de correio, mas também objectos, móveis e lembranças pessoais, vêm realizando através do seu projecto alheava, instalações que apelam ao sentido essencial da memória e da história vivida.

Nas três exposições individuais que realizou desde 2002 e em muitas mostras colectivas em que participou, foi dando continuidade a um único projecto, que se intitula alheava. Fale-me desse projecto.

A memória é o tema geral do projecto alheava. A história da minha família, o facto de ter nascido e vivido em Moçambique e no período da descolonização termos regressado a Portugal, é o ponto de partida para abordar outros temas mais específicos. O projecto começou quando a minha avó paterna faleceu. Nessa altura, percebi que muitas das histórias que ela me contava tiveram um primeiro fim e poderiam perder-se. Os «retornados» vivem de histórias, e nisto estão muito próximo das culturas indígenas, no sentido em que as histórias da tribo vão passando de boca em boca. Com o falecimento da minha avó cresce em mim a sensação de perda. Entretanto na faculdade já tinha realizado alguns trabalhos relacionados com o tema da memória. Neles questionava ainda a validade do artista e da sua actuação, o valor ou a importância da arte, o seu poder de representação ou simplesmente - representar o quê?. Só mais tarde, depois do acontecido, é que idealizei as várias situações que poderiam ser apresentadas em diferentes exposições. Concebi então, o projecto alheava.

A memória está ligada a uma identidade. Há nesse trabalho o apelo à narrativa biográfica, ao regresso às origens e à reconstituição do passado?

É o regresso às origens. Comecei por cristalizar as histórias que tinha em memória e mais tarde inclui outras que fui conhecendo. Vim para cá com 6 anos e as recordações de Moçambique são poucas. Na introdução do projecto, exposição que realizei no Artemosferas, parto precisamente da memória da casa onde nasci. A casa é uma metáfora, do lugar onde se regressa, é o primeiro lugar, o lugar dos afectos. Neste trabalho a casa reverbera também um outro lugar que é Moçambique. É um regresso. Para realizar os trabalhos procuro escutar histórias de familiares ou de outras pessoas com as quais convivo e faço gravações. É a oportunidade de saber mais sobre mim e sobre os outros. Ao fazê-lo também percebi que existem mais pessoas na mesma condição, com as quais temos algo em comum.

Trata-se de afirmar uma especificidade cultural?     

No trabalho sou um pouco egoísta, entendo que devo partir do particular, da minha experiência de vida, da minha procura, do local de onde sou e onde estou. O projecto alheava está relacionado com a esfera familiar, pessoal, mas estende-se à imagem de um país, a um corpo político e social. Interesso-me pela condição errante, de deslocado. Interessa-me pensar no que muitas pessoas deixaram para trás, o que é que perderam, como vivem e do que vivem. A imagem de alguém desapossado da sua memória, e a sensação de perda estão hoje muito presentes. Estas reflexões, são abordadas no livro De profundis, valsa lenta de José Cardoso Pires, livro do qual retirei a palavra «alheava» que intitula o projecto.

Quando fala na condição de deslocado, qual é o ponto de vista que adopta em relação às transformações culturais contemporâneas? É sensível às mudanças, compreende os fenómenos ou sente que é necessário recuperar algo que se está a perder?

A memória e as recordações são um ponto de ancoragem, é algo a que temos de voltar por necessidade, para localizarmo-nos e não nos perdermos. Basta ver os emigrantes de Leste, os chineses que aqui vivem, e os nossos emigrantes, para perceber que actualmente somos quase todos deslocados. Eu não sou do Porto. E quantos não são do lugar em que estão e se sentem deslocados? Quando isto é vivido sente-se a necessidade de encontrar uma base, de procurar referências, lugares com os quais nos identificamos, que transportaremos sempre. A memória perde-se. Hoje vivemos velozmente, não temos tempo nem para olhar para trás, nem para questionar o percurso realizado. Esquecemo-nos de onde vimos, e confundimos o que somos com o que parecemos, dirigimo-nos ansiosos para um futuro que desconhecemos. Este é um dos sintomas do presente.

Uma vez que o projecto tem um carácter mais abrangente, como é que gere a articulação do pessoal e do colectivo, do singular e do geral?

Quando o ponto de partida é muito pessoal, gosto de pensar que estou a fazer uma representação, aproximo-me da pintura. Quando utilizo objectos de família faço uma representação. Estes objectos têm uma biografia, uma vida própria, remetem-nos para outros lugares, outras culturas. Vieram de Moçambique para Portugal, mas aqui ganham outros significados, outros valores. A mobilidade é tanto dos objectos como dos seus proprietários.
Num museu ou num espaço de exposição, distancio-me deles, altero-lhes a biografia, a sua representação. As mesas para além da sua própria história remetem-nos a um «estar», um comungar. As malas remetem-nos ao conteúdo da casa, ao transporte de memórias, de afectos. Ao apresentá-los num espaço que não é a minha casa, onde serão vistos por um público anónimo, estes objectos actuam não num plano particular, pessoal, mas colectivo, social.
Quando o meu irmão viu a exposição no Museu Nogueira da Silva, em Braga onde coloquei louça, móveis, álbuns de família, não reconheceu de imediato alguns dos objectos. Ali, eram-lhe impessoais, exteriores.

Isso é interessante porque os teóricos de estudos culturais opõem a memória à história, salientando o plano da objectividade, do universal e da exigência de razão da história, e a ligação da memória aos afectos e às emoções. No caso da sua obra, estamos perante uma história de memórias?

É de certa forma a história das memórias porque tento seguir os dois processos. Como expliquei, pretendo distanciar-me e estar implicado. Contudo, não pretendo construir a história dos historiadores. Quero apenas tornar presente um momento que pertence à história e que ainda está por escrever e rever. A única perspectiva que está registada é a política e militar, não a das pessoas que viveram outras realidades. Como é que se poderá fazer história sem ter em conta a experiência dos que lá viveram? O que têm a contar? O que é que não foi dito? Porque não foi comunicado? O que está submerso, escondido e submetido ao silêncio? Porque se calaram? A história contada não revela e esquece muitas realidades. O que faço é: compilar memórias que estabeleçam uma relação com a história. Para representar esta relação parto das práticas museológicas e do museu como lugar do dar a conhecer, a ver, a apresentar, a História. A encenação museológica induz a uma das várias leituras do objecto. Em algumas situações, enceno a classificação e catalogação dos objectos. Na exposição apresentada no Museu Nogueira da Silva segui algumas das características e soluções adoptadas pelo museu na exibição da sua colecção de móveis e porcelanas. Em termos visuais aproximou-se de uma representação realista e, para alguns visitantes, hiper-realista. Para mim é apenas uma representação.

Manuel Santos Maia nasceu em Nampula, Moçambique, em 1970. Vive e trabalha no Porto. É formado em Artes Plásticas - Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Participou na primeira exposição colectiva em 1998, mostrando o seu trabalho na galeria da a.eFBAUP. É a partir de uma exposição colectiva intitulada To Play, realizada em 2002 no espaço Artemosferas do Porto, que Santos Maia dá início ao projecto alheava com a apresentação de um grupo de trabalhos centrados na abordagem do período colonial português e em muitas memórias e experiências de vida passadas em Moçambique. O conjunto mostrado chamava-se alheava - introdução e constituiu a primeira de uma série mais alargada de intervenções que foram sendo desenvolvidas pelo artista até à actualidade. A última delas foi exibida recentemente numa mostra individual, alheava - a casa onde às vezes regresso, no Museu Nogueira da Silva em Braga. Antes disso o artista já havia apresentado partes do mesmo projecto em duas mostras individuais e diversas exposições colectivas. Em 2002, destaca-se a exibição de inbox no espaço Nova Deluxe; imagem - objecto, nos Maus Hábitos; o prefixo (re), na Zé dos Bois; in.transit, a sua primeira mostra individual, no IN TRANSIT, Edifício Artes em Partes; e também, dentro_o mar, a sua segunda individual, no Salão Olímpico, e Mapa do Jardim, no espaço PêSSEGOpráSemana, ambas realizadas em 2003. De entre as exposições em que participou com a produção de outras obras, não especificamente relacionadas com a apresentação de alheava, salientam-se ainda, Objectos enviáveis / objectos inviáveis (Caldeira 213, Porto, 2000), Arritmia – As inibições e os prolongamentos do Humano (Mercado Ferreira Borges, Porto, 2000), Alquimias dos Pensamentos das Artes (Encontro de artes, Coimbra, 2000), ancoragem (Galeria Glória Vaz, Felgueiras, 2001) e Tivesse ainda tempo, Galeria Municipal de Fitares, Sintra, 2001).

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