Exposição: COSMO/POLITICS #4: Quando as Máquinas Param
Artistas: Catarina Botelho, Eduardo Matos e Vasco Costa
Museu do Neo-Realismo
Datas: 2019-04-27 – 2019-09-29
Curadoria: Sandra Vieira Jürgens e Paula Loura Batista
A quarta exposição do ciclo COSMO/POLÍTICA faz referência ao telefilme Quando as Máquinas Param, de 1985, da autoria de Pedro Belo e Luís Filipe Costa, obra que recupera a peça escrita em 1967, em plena ditadura militar brasileira, pelo dramaturgo Plínio Marcos. A exposição Quando as Máquinas Param, cujo tema de fundo é o trabalho, cruza outras referências pictóricas da coleção do Museu do Neo-Realismo que iconograficamente traduzem o quotidiano: as nossas relações laborais de exploração, de desigualdade, de exclusão social, de extração irracional de recursos — vincando a necessidade de mudança para uma sociedade onde a dignidade humana e do planeta seja realmente defendida.
Na exposição Quando as Máquinas Param apresentam-se projetos originais dos três artistas convidados, Catarina Botelho, Eduardo Matos e Vasco Costa, cuja reflexão sobre o tema explora a permanente dicotomia entre a necessidade e a liberdade no trabalho, sob diferentes prismas, alargando o âmbito de questões e problemáticas que se revelam intemporais e, aparentemente, irresolúveis.
Na nossa época pós-industrial e de substituição tecnológica é patente o cansaço de uma sociedade de individualismos incumpridos, tornados peças descartáveis de uma organização socioeconómica insustentável, que propõe menos emprego e mais consumo: mais direcionada, portanto, para a precariedade, sobrevivência e violência do que para a emancipação. Todas as reverberações políticas e existenciais que daí advêm não poderiam deixar de estar presentes na exposição: como marcas na paisagem e no território, e como consequências — e falências — éticas, afetivas, emocionais, abatendo-se sobre a condição humana.
CATARINA BOTELHO
A artista apresenta várias composições de imagens que repercutem três temas centrais da sua abordagem para este projeto expositivo, contemporizando algumas questões imanentes na peça de Plínio Marcos. A passagem de um capitalismo industrial (operariado) para um capitalismo cognitivo (precariado) que gera uma classe social emergente constituída por um número crescente de pessoas dependentes de trabalhos efémeros e flexíveis, em constante instabilidade e sem a perspetiva de ver garantidos os seus direitos culturais, políticos, sociais e económicos. Nesta conjuntura, Catarina Botelho destaca o papel da mulher, enquanto sujeito político ativo, assumindo um espaço público ou subjetivo determinante para o seu empoderamento e desequilibrando uma cultura, ainda marcadamente patriarcal.
As imagens da determinação, da força, da atitude e alguma ironia implícita nas frases de ordem inscritas nos cartazes, marcam o movimento de afirmação das jovens mulheres enquanto futuras trabalhadoras cognitivas e recusando qualquer tipo de violência ou subjugação. A dicotomia da paisagem industrial em declínio (cicatrizes de um passado proletário) com a nova arquitetura, novas construções que emergem nas cidades, transformando-as, dando-lhes novas identidades mas mantendo os resquícios industriais é abordada por Botelho numa leitura crítica dos processos de gentrificações várias que ocorrem num dos bairros que foi objeto do seu olhar. A leitura poética de um espaço ou paisagem, outrora industrial que é invadida pela natureza, num grito de resistência vegetal, anticapitalista, talvez porque não obedece ao ritmo do trabalho, mas sim ao da natureza, de acordo com a perceção de Botelho, dá-nos a dimensão dos territórios que subsistem com as suas dualidades, metáforas de um passado rotinado e agora presente descontínuo, apenas sujeito ao ritmo da natureza e dos corpos que ali vagueiam.
EDUARDO MATOS
Desvio_O intervalo entre as coisas, resulta de uma prática de trabalho de campo, eixo estruturante do processo criativo de Eduardo Matos. Essa prospeção dos diversos territórios visitados potencia a procura dos intervalos entre as imagens e os objetos apresentados.
Em Quando as Máquinas Param, o artista apresenta uma instalação com projeção de dois vídeos e uma mesa com diversas peças, abordando o tema da exposição enquanto geografia de trabalho e, simultaneamente, como possibilidade de transformação. Essa força da transformação, intrínseca à supressão dos desequilíbrios sociais que impregnam e alimentam as expetativas face à necessidade de mudança, também se faz através dos ecos que tais territórios captados nos vídeos emanam, sejam materiais e tangíveis, sejam imaginados ou submersos. Mas há uma substância, uma matéria a tudo comum que determina a impermanência ou a transformação: a água. É no seu curso, no caso do vídeo Garganta que descobrimos a impermanência, a transformação, apesar da ilusória imutabilidade dos cenários industriais, pontuados por estruturas fabris abandonadas e arruinadas, ou ambiguamente rurais e urbanas, pós-industriais. São paisagens captadas em diferentes territórios: nas margens do Rio Ave, em Sacavém, nos estaleiros navais de Gdansk, na Polónia. Apesar desses intervalos, dessa quietude temporal, onde as máquinas já não funcionam, há movimento. Dali irrompem sons, há sinais de mutação, como a dos objetos imersos, engolidos, alterados e sujeitos ao desaparecimento, como no vídeo Intervalo. De igual modo, a pausa que conduz à reflexão, é-nos dada a percecionar simbolicamente pela imagem da operária do Vale do Ave, projetada na instalação, onde se apresentam diversos objetos escultóricos, criados a partir da transformação da matéria comum, neste caso a própria lama do Rio Trancão.
VASCO COSTA
O agravo subversivo da paragem da máquina, dessa incongruência (ou inaceitabilidade), é abordada por Vasco Costa na enigmática obra Um Camelo no Alaska. Adotando o jogo de opostos sobre o conceito de “paródia”, criado por Georges Bataille no seu texto O Ânus Solar, publicado em 1931, Costa reinterpreta e questiona a descontinuidade, o interregno, a deriva que o texto de Plínio Marcos evoca. Imóvel e disfuncional, este corpo escultórico estranho, exótico, híbrido, meio animal meio maquinal, convoca a ideia do “absurdo da paragem” e a da “utopia do folgo” — todavia, não apenas da máquina, mas do sujeito produtivo confrontando a sua indissociável ligação a situações críticas, de inatividade forçada, de inutilidade, de precariedade, de quotidianos condicionados por uma sociedade de produção e tempos laborais.
Neles, a erosão dos sentidos conduz à frustração, à desorientação, ao isolamento e a uma sensação de vida nua, traduzida em estados de loucura, alheamento, revolta, violência física e psicológica, com consequências mentais, sociais, económicas e existenciais graves. Paralelamente, esta obra leva-nos a uma outra problematização, a da relação entre o corpo e a pele, a máquina e o corpo, a máquina e a pele, o frio e o quente, os sentidos, a que se pode acrescentar o peso da história: a industrialização evocada pela betoneira, por sua vez associada ao movimento rotativo e à engrenagem que tudo gera e à pele animal depositada horizontalmente sobre a máquina, evocando um universo pré-máquina, uma cosmologia natural, que nos leva a uma memória vaga de origem e a uma certa ideia de pureza e calor. Testemunho e símbolo de certo passado, estas são sobretudo referências significativas para o presente: uma obra sobre a humanização da máquina e da sua camuflagem através de uma organicidade apelativa.