Neo-modernos

Revisitar os clássicos do século XX

Texto publicado na revista Arq./a – Revista de Arquitectura e Arte, n. 113 (Maio-Junho 2014) pp. 122-125. ISSN: 1647-077X

Ainda à espera de um novo conceito que defina bem o nosso «espírito do tempo» podemos aceitar a designação neo-modernos. Com efeito, os investigadores, artistas, arquitectos têm se debruçado muito mais sobre o projecto moderno do que pela pós-modernidade ou mesmo pela pós-pós-modernidade. Nos últimos anos, entre a apropriação nostálgica e as práticas críticas, são muitas as possibilidades de encontrar retratados temas, aspectos, símbolos visuais relacionados com a modernidade e o modernismo na produção artística contemporânea.
A modernidade, o modernismo e o projecto moderno constituem temas de análise em diferentes âmbitos e não apenas no universo académico. Contudo, nem mesmo nesta esfera existe um consenso em relação às raízes, à origem e aos limites temporais da modernidade. Existe uma pluralidade de modernidades, como nos ensinaram os estudos pós-coloniais.
Sabemos também que existem diferentes definições, concepções e versões de moderno e de modernismo. Um historiador da arte poderá dizer que o modernismo é um conjunto de movimentos, escolas e estilos que instauram uma nova cultura artística que rejeita a tradição e as convenções artísticas, situado na passagem do século XIX  para o XX; outro dirá que o ano de 1863 pode ser considerado um dos seus marcos iniciais, por ser o ano da instituição do Salão dos Recusados e da publicação de O Pintor da Vida Moderna, obra do poeta e crítico Charles Baudelaire (1821-1867), primeiro autor a introduzir o termo de modernité; um outro afirmará que o marco essencial do modernismo se situa em 1907, data da apresentação de Les Demoiselles d’ Avignon. As dificuldades de definição atingem ainda a arte moderna. Há quem use a expressão arte moderna como sendo equivalente a modernismo, situando o seu início no século XIX ou na passagem deste para o século XX, alargando o seu limite cronológico até aos anos setenta do século passado, época em que se inicia o que designamos por arte contemporânea. Há igualmente controvérsia sobre os traços distintivos do projecto moderno. Para alguns este deu lugar ao pós-modernismo e constitui hoje uma entidade histórica mas para autores como Jürgen Habermas esse projecto está incompleto.
Existindo diferentes versões e narrativas, prevalece a ligação da prática artística moderna à vontade de autonomia artística, ao desejo de existência de uma linguagem universal, à afirmação da abstracção geométrica, ao formalismo. E digamos que são esses os traços que maior efeito têm tido nas várias reapropriações e reciclagens dos últimos anos. Se as referências da pintura moderna são Kazimir Malevich, Piet Mondrian, Joseph Albers, não deixa de ser curioso que entre os artistas seja o tema da arquitectura moderna o mais recorrente. Na década de noventa, Hiroshi Sugimoto registou o Seagram Building de Mies van der Rohe (1997), depois a Villa Savoye de Le Corbusier (1998). De resto, os edifícios mais citados pelos artistas são os projectos icónicos de destes arquitectos. Em 1999, também Thomas Ruff começou a desenvolver a série L.M.V.D.R. – as iniciais de Ludwig Mies van der Rohe – na sequência de uma encomenda a propósito da renovação de dois projectos do arquitecto: a Haus Lange e a Haus Esters em Krefeld, na Alemanha. Dessa série faz parte uma fotografia do Pavilhão de Barcelona do mesmo arquitecto, também trabalhado por Dominique Gonzalez-Foerster, artista que em 1999, fez um projecto sobre o mesmo assunto. A viver temporariamente no Brasil, desde 1998, esta artista francesa, interessou-se por uma noção de Modernidade Tropical, realizando trabalhos vários sobre novas concepções de modernidade, novas leituras do mundo, novas paragens e atmosferas que combinam a racionalidade e a arquitectura moderna ocidental com a dimensão emocional e o clima tropical. Brasília (Lucio Costa e Oscar Niemeyer), o Pavilhão de Ibirapuera, a generalidade das obras de Oscar Niemeyer e os principais trabalhos de Roberto Burle Marx tem sido foco de atenção de muitos artistas.
Determinante para intensificar esta abordagem das práticas artísticas ao projecto moderno foi, em 2007, a realização da Documenta 12. Com direcção artística de Roger M. Buergel, lançava como questão fundamental de discussão, o destino e o legado da modernidade através de uma questão paradoxal: «Is Modernity our Antiquity?» [«Não será a Modernidade a nossa Antiguidade?»][1].
Comum aos recursos e à metodologia das práticas artísticas centradas na modernidade é a apropriação de imagens pré-existentes. Os documentos fotográficos de edifícios modernos constituem elementos do vocabulário formal da arte contemporânea, verificando-se em muitos casos uma abordagem crítica ao potencial utópico da modernidade e ao fracasso desse ideal, que transcende a simples homenagem aos seus autores e às suas obras mais emblemáticas. São muitos os projectos que se ocupam da promessa de transformação social, das dimensões sociais e políticas do projecto moderno, da secularização, do desejo de igualdade, do progresso, do direito à autodeterminação, da democracia, dos princípios dos direitos humanos e do lado mais sombrio da modernidade, o colonialismo. Se tomarmos em conta o catálogo de uma exposição dedicada ao tema, como é Modernologías: Artistas contemporáneos investigan la modernidad y el modernismo – realizada no Museu d’Art Contemporani de Barcelona (2009/2010), com curadoria de Sabrine Breitwieser –, verificamos que na generalidade dos casos, é entre aqueles que indagam e interrogam determinados episódios, aspectos e dimensões contraditórias e ambivalentes da modernidade e do modernismo que encontramos os trabalhos mais interessantes. São eles que indagam os paradoxos e os becos sem saída destas visões de mundo, constituindo reflexos críticos sobre as suas múltiplas facetas.
A artista austríaca Anna Artaker, presente na exposição, desenvolveu uma série de trabalhos Die unbekannte Avantgarde [Vanguarda desconhecida], 2007, bastante interessante, em que se apropriou de fotografias documentais de movimentos e grupos de vanguarda artística e examinou o modo como se inscreveram e permaneceram representados na história oficial do modernismo. O trabalho consistiu na selecção de dez fotografias históricas que representam colectivos das vanguardas do século XX (Dada, Surrealistas, Bauhaus, a Internacional Situacionista, etc.)[2] e onde aparece uma só mulher em cada grupo. Interessando-se por esta demonstração da posição isolada das mulheres na história da arte, neste trabalho, Anna Artaker rescreve a história, corrigindo essa percepção e assinalando a actividade das mulheres nas vanguardas. Expondo o que ficou à margem da história oficial destes movimentos, o seu projecto evidencia simultaneamente a complexa interacção entre a representação e a realidade.
Também representado nesta exposição estava Armando Andrade Tudela, artista peruano, interessado em analisar de que forma os cânones ocidentais são assimilados e reactivados política e socialmente em contextos locais. Na série Camión apresenta imagens documentais de veículos pesados – registados pelo artista entre Outubro e Dezembro de 2003 nas autoestradas peruanas Central, Panamericana Sur, Panamericana Norte e Lima Metropolitana – com logótipos empresariais que evidenciam uma apropriação vernacular de elementos da cultura erudita. Muito concretamente, recuperaram formas muito semelhantes à abstracção europeia do pós-guerra, por exemplo da pintura geométrica das décadas de cinquenta e a setenta do século XX. No seu trabalho, representativo do Modernismo Tropical, o ponto de partida é então a realidade cultural da América Latina e os sistemas de tradução e transferência ou as apropriações vernaculares e as distorsões populares que em determinadas geografias e contextos ocorrem relativamente às ideias estéticas do modernismo europeu.
Igualmente presente nessa exposição estave Ângela Ferreira, artista que entre nós mais tem desenvolvido estes temas e linhas de investigação no seu trabalho. No seu projecto para o Pavilhão Português na 52ª Bienal de Veneza (2007) apresentou Maison Tropicale, instalação baseada nas casas pré-fabricadas do arquitecto francês Jean Prouvé, enviadas para serem instaladas sobre colunas e assentamentos no continente africano, em Niamey (Nigéria) e em Brazzaville (República do Congo). Ângela Ferreira interessa-se por dialogar com as referências plásticas e conceptuais da arte e da arquitectura modernas e desde a década de noventa foram muitos os trabalhos que tem vindo a desenvolver tomando como linhas de investigação, as diferenças culturais e a experiência intercultural, a disseminação e o conflito entre o potencial utópico dos modelos ocidentais e a realidade africana.
Em Sites and Services (1991-1992) (Módulo – Centro Difusor de Arte, 1994), Ângela Ferreira trabalhou sobre um modelo de povoamento desenvolvido pelo governo sul africano para combater a proliferação de bairros de lata nos arredores da Cidade do Cabo. Em 1999, apresenta na Casa de Serralves uma exposição que tem a casa onde nasceu em Moçambique, um exemplar de arquitectura modernista, como objecto de reflexão. A mostra intitulou-se Casa: Um retrato íntimo da casa em que nasci e a partir dessa imagem e memória, em O Retrato da Casa ou as referências possíveis de uma intimidade (1999), aliou a visão pessoal à evocação do impacte cultural europeu no seio do mundo africano. Na instalação Zip Zap Circus School (2000-2002) presente na exposição Em Sítio Algum, realizada no Museu do Chiado, em 2003, trabalhou a partir da obra arquitectónica de Pancho Guedes, tendo igualmente como referência a maqueta da casa/museu que Mies van der Rohe desenhou para a família Kröller-Müller.
Dando curso a uma linha de trabalho contínua, Ângela Ferreira apresenta agora a exposição Indépendance Cha Cha, no espaço Lumiar Cité da Maumaus (15.4 – 01.06.2014), com uma instalação que surge na sequência da sua participação na Bienal de Lubumbashi, em 2013, na República Democrática do Congo. Trata-se de uma escultura/instalação que evoca a arquitectura colonial dos anos cinquenta, presente em Lubumbashi, capital da província de Katanga, região de exploração mineira, antiga colónia do Congo Belga. Integrados na estrutura de madeira clara que atravessa o espaço da Lumiar Cité estão ecrãs para a projeção de dois vídeos onde documenta respectivamente a performance realizada por dois cantores com a música – «Je vais entrer dans la mine» – sobre a vida das minas e a actuação da banda do Park Hotel Lubumbashi que interpreta a canção «Indépendance Cha Cha», hino dos movimentos de independência dos países francófonos.
A instalação é ainda constituída por duas vitrinas onde apresenta fotografias e documentos da sua pesquisa para a Bienal de Lumbubashi. De resto este é um dos traços particulares da obra de Ângela Ferreira. Aí figura uma fotografia da escultura pública Entrer dans la mine, instalada na parte superior do edifício situado na Avenida Munongo, no centro colonial da cidade – desenho do arquiteto belga Claude Strebelle e onde se localiza o posto de combustível GPM. Realizada como citação do projecto idealizado e inacabado de Vladimir Tatlin, O Monumento à Terceira Internacional, a escultura de Ângela Ferreira relativa a sua escala mas mimetiza a inclinação prevista pelo arquitecto, de 23,4º, também correspondente à inclinação do eixo de rotação da terra, evocando o desejo de universalismo e de igualdade do pensamento utópico moderno. Este também é um projecto onde é estabelecido um diálogo entre universos estéticos modernos diferentes: é evocado o construtivismo russo mas também o legado minimalista de Dan Flavin, autor que realizou várias séries de esculturas baseadas no mesmo «monumento»; e a obra de Edward Ruscha, Twenty Six Gasoline Stations (1963), um livro de autor onde regista 26 postos de combustível, num gesto de claro desejo de afirmação da cultura vernacular/popular moderna nos anos sessenta.
Sobre o interesse da cultura modernista enquanto referência da obra de Ângela Ferreira, não deixaria de destacar as suas palavras numa entrevista sobre o tema, de 2004:
«Fui educada numa escola de Belas Artes que promovia a ideologia modernista. E os meus professores, no fim dos anos 70, estando bem informados da contemporaneidade de então, eram muito naturalmente modernistas afincados. A minha linguagem plástica tem portanto uma raiz fortemente modernista. Porque também tenho um discurso crítico, no sentido de fazer perguntas ao que me rodeia, uma das evoluções normais foi também questionar essa linguagem plástica em que tinha sido educada. Para além disso, é preciso não esquecer que o século XX foi ocupado na sua grande parte por um discurso modernista. Estamos a falar de modernismo em variadíssimas formas – desde Braque, passando pelo Dadaísmo, muito mais tarde, por um alto modernismo americano, caso do minimalismo e do conceptualismo que são movimentos de grande sofisticação modernista – e lidando com os entremeios e com a ideia de modernismo do ponto de vista da arquitectura. O modernismo é uma linguagem que domina o século XX e domina as imagens e os eventos que nos ocupam a mente. Logo o questionamento do modernismo surge claramente porque ele está muito presente. E para ser mais específica, diria que as minhas preocupações passam  pelo modernismo na arquitectura, pela curiosidade que senti em relação ao modernismo e fascismo, sobretudo, pela estranha e interessante relação que existe em Portugal.»[3]

 


Footnotes

  1. ^ Mark Lewis, «Is Modernity our Antiquity?» in Documenta Magazine n. 1-3, 2007. Cologne: Taschen, 2007, pp. 40-65.
  2. ^ Esses dez colectivos artísticos são: Zielscheibe, Moscow, 1913 (The Target Group); Groupe dada, Paris, 1922; Surréalistes, Paris, 1924; Bauhaus, Dessau, 1926; Experimentele Groep, Amsterdam, 1949; Cobra, Paris, 1949; Abstract Expressionists, New York, 1950; Situationist International, London, 1960; Gruppe Spur, Schwabing, 1961; Austria Filmmakers Cooperative, Vienna, 1968.
  3. ^ Sandra Vieira Jürgens, «Ângela Ferreira» in  arq./a: Arquitectura e Arte, n. 23, Janeiro/Fevereiro 2004, pp. 86-89.

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