Bárbara Coutinho: Entrevista

MUDE

Entrevista a Bárbara Coutinho, publicada na Artecapital, Março 2011.

Ser um projecto museológico internacional, dinâmico, aberto e inovado com espaços de exposição, divulgação, investigação, criação e conservação do design português é um dos objectivos do MUDE − Museu do Design e da Moda, que abriu ao público em Maio de 2009, num espaço privilegiado do centro de Lisboa. Nesta entrevista com a directora do MUDE, Bárbara Coutinho, quisemos conhecer os planos da construção deste museu site-specific, cuja programação e instalação na antiga sede do BNU, constitui um verdadeiro projecto working in progress. Acompanhar a contemporaneidade, entender a museologia de uma forma mais criativa e provocar uma mudança na atitude perante a criação contemporânea são aspectos a destacar nas suas linhas de trabalho.

Um museu com estas características, implantado no centro da cidade, é uma aposta ganha. E em Portugal, o MUDE é talvez um dos mais bem conseguidos casos de adequação e coerência entre espaço e conteúdos, por exemplo, à semelhança de centros como o Palais de Tokyo que assumem o contexto, a permeabilidade, a informalidade e a flexibilidade da cultura contemporânea. Em termos do projecto do museu, este caminho não tem retorno?

Penso que esta estratégia ganhou uma força e solidez muito consideráveis. Não sei se terá retorno ou não mas representa já, sem dúvida, uma nova investigação no campo da museologia, onde se procura uma relação diferente com o próprio património arquitectónico, de maior convívio e habitabilidade. Não falamos de uma preservação quase ideal de uma época nem de uma transformação radical para criar aqui um cubo branco para a apresentação de exposições. No caso do Palais Tokyo, o edifício sofreu uma transformação interior bastante profunda para ter aquela imagem de informalidade da arte contemporânea. No caso do MUDE, esta estratégia nasceu das próprias contingências do nosso tempo e de uma consciência de uma nova realidade socioeconómica, financeira e cultural. Em Setembro 2007, quando visitámos pela primeira vez o edifício onde estamos, partíamos com uma colecção, um acervo que estava já quase há dois anos fechado, longe dos olhares do público.
Apesar do aspecto destruído do edifício, encontrámos um espaço com uma forte identidade e singularidade. Sentimos logo que ele tinha uma força e uma qualidade que exigiam uma estratégia diferente daquela que tínhamos planeado inicialmente. Em termos metodológicos é muito interessante o próprio percurso de constituição deste museu. Tínhamos a colecção e uma equipa de arquitectura constituída por Manuel Reis e Alberto Caetano que pensaram connosco o primeiro projecto em termos espaciais, a partir do programa museológico desenhado por mim. O próprio devir e as circunstâncias conduziram a uma nova estratégia – não aguardar as condições ideais para uma transformação integral do edifício e ir ocupando o espaço, piso a piso, com uma intervenção mínima mas com a instalação das condições de segurança de pessoas e bens. Essa estratégia, já realizada com os arquitectos Ricardo Carvalho e Joana Vilhena, representou uma experiência única para toda a equipa. Com ela fomos conhecendo cada vez melhor o edifício e perdendo as certezas que tínhamos, discutindo-as, debatendo-as e percebendo que talvez houvesse um outro caminho. E foi esse o caminho que decidimos fazer, um caminho não de transformação integral dos interiores mas de preservação, numa dialéctica com o tempo de hoje. Trata-se de criar uma linguagem contemporânea, feita através das opções espaciais das diferentes exposições tomadas por diferentes designers e arquitectos convidados. Esta estratégia procura ir criando uma unidade arquitectónica que mostre a própria passagem do tempo no edifício e a qualidade do seu desenho arquitectónico. O caminho até à data, já em termos de MUDE, representa uma assertividade e uma solidez espelhadas também no novo projecto arquitectónico em curso, actualmente em fase final de estudo prévio, seguindo para a fase de especialidades e projecto de execução. Este novo projecto aponta exactamente para a preservação e para o mínimo de intervenção no edifício, dando-lhe as infra-estruturas necessárias (AVAC, segurança, electricidade, redes de água e esgotos, etc.). A ideia é preservar os diferentes tempos do edifício. Neste sentido, considero que este Museu é um exemplo, mesmo a nível internacional, que deverá ser estudado, e que poderá servir como referência de debate perante o contexto de edificação de novos edifícios que marcou os últimos anos do século XX e os primeiros do século XXI – edifícios construídos de raiz, espectaculares, escultóricos, assinados por grandes nomes da arquitectura. Penso que há outro caminho, igualmente interessante e válido, que tem de ser analisado, ponderado, consoante o próprio local, a cidade onde se integra, os meios que existem ao dispor, a colecção que se tem e os objectivos que se quer atingir.

Estamos a falar de um museu site-specific. Até que ponto não é distintivo de uma maior permeabilidade da museologia e das instituições ao que foi o movimento anti-cubo branco? Achas que este é um bom exemplo dessa abertura das instituições às práticas artísticas mais contemporâneas?

Em meu entender, é realmente um bom caso. Acho muito pertinente a definição que estás a usar de site-specific porque quando comecei a pensar nesta estratégia surgiu-me a expressão «museu working in progress» que é também um termo proveniente do universo das artes visuais, sobretudo da modernidade e da contemporaneidade. De facto, a museologia, disciplina com um longo caminho e vários momentos de repensamento do seu próprio corpus e da sua própria metodologia, nos últimos anos esteve pouco receptiva às alterações que o próprio objecto que muitas vezes ela alberga tem estado a viver. Portanto, acho muito interessante essa comparação porque se nós olharmos para as primeiras décadas do século XX vamos encontrar, não tanto nos museus mas sobretudo nas galerias, uma abertura muito grande às novas práticas artísticas. Assistimos depois a um momento de solidificação com a ideologia do cubo branco, que é também a marca da própria ideologia moderna. Após anos de persistência deste modelo, assistimos à profusão pós-moderna de novas propostas espectaculares de novos edifícios. Em minha opinião, este caminho que estamos a experimentar ausculta mais as próprias alterações do objecto, e aqui incluía também o que acontece no campus do design, que é hoje mais processual, mais experimental, participativo. Cada vez mais há esta preocupação de completar o objecto ou do objecto ser mais irónico, ter notas de maior humor, de conjugar o design com o saber mais específico do artesanato. Ou seja, o próprio conceito de design também já não é o do postulado funcionalista. O design é hoje um campo muito mais aberto, mais transversal. É um campo que está muito mais próximo da arquitectura, das artes plásticas, relacionando-se com uma série de outras áreas de expressão. Considero que um museu dedicado ao design tem que ter essa abertura e transversalidade. O MUDE está a fazer um caminho que ainda está longe do fim, há ainda muita coisa por fazer, em termos de exposições e em termos dos próprios serviços que procuramos oferecer. Aos poucos e poucos iremos trabalhar mais esta marca de interactividade, de abertura, de espaço de debate e discussão, de lugar que estuda e divulga a sua colecção, ao mesmo tempo relacionando-a com a criação contemporânea. A este propósito, um dos projectos mais interessantes é o Creative Lab, onde convidamos designers portugueses a desenvolver projectos específicos no museu, partindo da colecção, do conceito de museu e da sua própria obra/reflexão. Penso que é esta fusão entre tempos diferentes que torna o museu mais interessante e activo. Pessoalmente foi isso que me encantou e fascinou neste edifício. A abertura do museu resultou de um gesto de risco e de ousadia de várias pessoas, do Presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, que decide instalar o museu na Baixa Pombalina; de Francisco Capelo que sempre acreditou nas potencialidades da sua colecção e do edifício onde nos encontramos. Como sabemos, a colecção Francisco Capelo, adquirida por Pedro Santana Lopes, vinha do CCB, onde o espaço é outro, onde há maior oficialização e formalidade. Aqui o espaço é menos oficial, exige outro projecto, mais jovem, mais transversal. Depois há todo um trabalho de equipa que materializa, dia-a-dia, o próprio projecto.
Uma das coisas que imediatamente fui tomando consciência, e foi um processo de crescimento, é que o edifício é realmente uma metáfora do projecto e vai constituindo-se com o próprio projecto. E o projecto do museu também se transforma com ele e daí eu referir que no início tivemos a humildade e ao mesmo tempo o risco de dizer: bom, a nossa ideia inicial não se encaixa aqui, este edifício exige outra coisa e essa exigência não vai contra os objectivos iniciais do museu, concorre para eles. Vamos ver como os aprofundamos. Nesse sentido, é um desafio com um certa dose de risco estar a construir paulatinamente o museu. Ao mesmo tempo, construir toda a infraestrutura e desenvolver um programa expositivo e cultural...

E como é que vão aprofundar esta ideia de museu em construção? Como é que vão estabelecer-se as etapas futuras?

Normalmente quando percorro o museu tenho simultaneamente três imagens na cabeça: a imagem do que é hoje, a imagem do que está previsto que seja no futuro e a imagem das etapas entre estes dois momentos, sabendo que o terceiro não representa um fim em si mesmo. O que é que eu quero dizer com isto? Estamos agora a ocupar os pisos – 1, 0 e 1. Prevemos que no final de 2013 – vamos ver o que é que o contexto financeiro nos permite fazer – consigamos abrir o restaurante e a esplanada no terraço, ter uma boa loja, uma espécie de FNAC do design e da moda no piso térreo (onde está hoje a nossa exposição permanente), contaminando as ruas envolventes e sendo um espaço de montra para a produção e criação de qualidade em Portugal, local fundamental não só para Lisboa, como para todo o país, tal como será certamente para os designers e as marcas. Com ela, o MUDE pode ter um papel muito importante no contributo ao desenvolvimento da criação. Até final de 2013 esperamos também ter no edifício as reservas de moda e de design, que neste momento estão num espaço fora do museu, tal como esperamos ter garantido o acesso a todos os pisos.
O museu vai então passar por diferentes fases de obra, tendo sempre um espaço aberto ao público consoante o próprio estado das obras. Este foi um compromisso que assumimos e que vamos fazer tudo para cumprir. Se não conseguirmos cumprir, será uma falha nossa. A noção do museu site-specific ou working in progress está intimamente relacionada com esta metodologia nómada. O próprio edifício vai metamorfoseando-se continuamente. Poderemos estar no piso 3, no piso 2 ou ir para o piso 1, enquanto as obras estiverem a decorrer. Temos também pensada toda uma estratégia de comunicação com o público quando as obras de fundo realmente começarem. Por outro lado, na fase pós-obras, em termos conceptuais, as galerias expositivas estão pensadas de forma a serem um espaço polivalente, flexível, multifuncional, que permita criar uma dinâmica diferente de ocupação. Ou seja, pode haver aqui um espaço para uma escola de verão, simultaneamente haver espaços para residências de artistas, espaços para oficinas de trabalho, um centro de documentação aberto ao público, reservas visitáveis, exposições mais interactivas com diferentes níveis de interpretação, espaços para passagens de modelos, talvez espectáculos ou concertos que cruzem, sempre de forma dialogante, com a temática do design e da moda... Ou seja, a própria espacialidade do museu não vai constituir uma rigidez formal que não permita a sua constante transformação. O que estamos a tentar fazer, em termos de espaço, é ver como é que ele pode ajudar no próprio programa e nas opções estratégicas. Gostaríamos que o público pudesse sempre ter um efeito surpresa. Cada exposição é assim uma oportunidade para investigar novas propostas em termos de design expositivo e design gráfico. Encaramo-la como um momento de trabalho e de reflexão sobre a própria questão do que é expor design. Na minha opinião há um grande caminho a percorrer em relação a esta questão. Como se expõe uma peça de design? De uma certa forma, um museu de design é quase paradoxal pois o design é pensado tendo a utilidade como factor determinante. De algum modo, um museu de design retira essa natureza. Um objecto de design num museu torna-se mais num objecto de desejo, numa peça museológica. Por isso, alguns designers questionam o porquê de um museu de design. Eu não partilho dessa opinião, mas penso que é preciso ir estudando diferentes modos de comunicação e exposição, porque hoje as questões de conservação que se colocam já não são as mesmas de há 30 ou 50 anos. Com as tecnologias e o estado de saber actual já não se coloca a questão de perdermos o objecto original. Poderemos até replicá-lo de forma a que possa ser utilizado pelo público, podemos por exemplo mostrar, de forma documental mais ou menos interactiva, qual foi o seu processo de elaboração, desde a ideia inicial aos estudos vários que se fizeram até à produção do produto final.

É uma forma de ocupação do espaço transitória, nómada. E como é que se processa, ou como é que é o equilíbrio entre a estabilização institucional, importante para o reconhecimento público alargado, e a experimentação?

É um equilíbrio com uma certa dose de instabilidade. Por isso referi que o equilíbrio tem um risco assumido com consciência e responsabilidade. Pela própria dimensão do museu e pelos orçamentos envolvidos, temos claramente uma responsabilidade pública, um papel e um lugar institucional a cumprir. Estas exigências espelham-se nos objectivos e nas opções estratégicas da programação. Assim, temos uma área dirigida ao estudo, investigação, divulgação e apresentação de nomes do design em Portugal. Fizemos uma exposição sobre António Garcia, este ano vamos fazer uma sobre a obra de Kukas, e para o ano gostaria muito de organizar outra mostra sobre Manuela Gonçalves/Loja Branca. São três nomes pioneiros e que são ainda ilustres desconhecidos, infelizmente. Ilustres desconhecidos, mas absolutamente determinantes para começarmos a fazer uma história do design em Portugal. Apesar de terem saído alguns títulos e de algumas pessoas estarem a escrever, e bem, sobre a moda e o design em Portugal, há ainda uma história do design a fazer e penso que o MUDE tem aí um papel fulcral.
Outra área da programação é, evidentemente, a de estudar, divulgar e apresentar a Colecção Francisco Capelo e os outros espólios que entretanto forem chegando ao museu. Isso permite todo um trabalho de continuidade que permita ir conhecendo e reflectindo sobre a evolução das formas ao longo do século XX até à actualidade.
Há depois um terceiro eixo, a que chamei Creative Lab, onde se exploram outras linhas de trabalho através das colaborações com criadores contemporâneos que temos vindo a convidar. Paralelamente, muito embora ainda embrionário, existe um caminho baseado na relação com o tecido empresarial na promoção e desenvolvimento de projectos nacionais em que o museu possa contribuir para a afirmação e o desenvolvimento do design em Portugal. Um destes projectos vai acontecer brevemente. Trata-se de uma colaboração com o Grupo Visabeira no sentido de apresentarmos, no MUDE, as novas sete peças feitas na Fábrica de Faianças Artísticas Bordallo Pinheiro e desenhadas por designers contemporâneos. Esta colaboração resultou na preservação e produção do único serviço de mesa desenhado por Bordallo Pinheiro (que não é aquele que normalmente conhecemos, em formato de couves). Vamos apresentar este novo, antigo, desenho de Bordallo Pinheiro num jantar (que ficará depois visitável enquanto instalação) e vamos também lançar um concurso dirigido a novo designers para ser desenhado um novo serviço de mesa para a Fábrica Bordallo Pinheiro. Este tipo de colaborações parece-me importante, pois assim poderemos ir contribuindo para o estreitamento das relações entre o sector mais criativo e o sector mais empresarial ou industrial. Associado a esta programação expositiva, desenvolve-se o programa cultural e educativo. Portanto, em termos institucionais, há claramente uma perspectiva dos eixos principais que cabe a um museu de design desenvolver num país como o nosso e no quadro internacional que conhecemos.
Soma-se ainda uma outra área, que há pouco não referi, mas que é muito importante, e que vai começar a dar os seus primeiros frutos muito brevemente. É a co-produção de exposições em parceria com instituições internacionais. Pessoalmente parece-me muito mais interessante a co-produção do que a recepção de exposições itinerantes. Mesmo em termos de trabalho a médio e longo prazo, este tipo de parcerias é muito mais rico e profícuo. É um caminho que está a começar a ser percorrido. O próprio contexto económico e financeiro obriga, no bom sentido, a desenvolver redes de colaboração de trabalho, de ideias, de custos, de espólios, a trabalhar em equipa, em parceria efectiva, em termos de exposições, mas também em termos, por exemplo, de constituição de bases de dados através das quais seja possível cruzar, cada vez mais, os conhecimentos que estão dispersos por vários museus. Esta é a visão institucional. Mas o trabalho institucional pode ser realizado com essa dose de risco, com vontade de experimentar novas formas, métodos e com um sentido mais informal e mais nómada. E penso que nós aí somos pioneiros, mesmo em termos internacionais. Ser pioneiro acarreta um risco, mas também é um grande desafio. Trata-se de abrir um caminho, de estar receptivo à própria crítica e à autocrítica e perceber o que às vezes não funciona tão bem. O mais importante é aprender com essas experiências para que na próxima vez acertemos as agulhas, perceber que outros colaboradores deveremos convidar, pensar as coisas com mais tempo, pensar que se não era aquela a metodologia, qual será. Ou seja, é necessário assumir que o museu é uma instituição viva e que está à procura de novas soluções, sobretudo num tempo em que tudo se altera. O panorama alterou-se completamente, a aprendizagem, o saber, o lazer, a cultura, o conhecimento... alterou-se tudo e temos que ter a capacidade de perceber que o museu também tem de se alterar para se tornar mais vivo e mais actuante. Tem que ser ainda mais activo para poder cumprir os seus objectivos e para ser um espaço que as pessoas frequentem, e não apenas visitem. Visitar é diferente de frequentar. Para mim é muito mais interessante e rico frequentar porque implica participação, discussão, regularidade. Mesmo quando o público vem ver a exposição das sementes pode pensar: mas porque é que um museu de design apresenta uma exposição de sementes? Porquê? Faz sentido? A discussão não me amedronta. Ela origina saber, debate, reflexão, que é essencial para um trabalho de grupo que é aquele que está na base de um museu. O museu é por inerência um trabalho de equipa.

Referiste a questão de criar redes a nível internacional, a importância de as cimentar, gostava de saber qual é a tua opinião sobre a internacionalização da cultura portuguesa? Achas que as co-produções são um bom modo e um caminho mais natural para incentivar a internacionalização?

Penso que esse é um caminho mais natural, mais alicerçado e com mais consequências. É um caminho de troca e de diálogo, de trabalho efectivo. É evidente que todos nós subscrevemos o objectivo de internacionalização da cultura portuguesa. Mas essa internacionalização deve estar alicerçada num trabalho intra-portas e implicar talvez um olhar sobre a cultura portuguesa mais complexo e mais abrangente. Algumas áreas precisam não só de ser incentivadas, e não estou a falar de incentivos financeiros, porque aí criamos depois outro problema de dependência que também não me parece que seja saudável. Temos é de perceber que nós temos uma cultura riquíssima, histórica, com áreas que ainda são desconhecidas do público e que devem ser tomadas opções estratégicas claras de incentivo ou de promoção dessas áreas dentro e fora de portas. Em termos de internacionalização, para mim o caminho mais válido parece-me ser o do trabalho, da troca, da parceria interinstitucional, de trazer cá e de levar para fora criadores interessantes. Porque essa abertura também foi aquilo que nos caracterizou, sobretudo a partir do século XV. E essa abertura é o que torna muito rica a nossa história. Devemos ser capazes de a continuar. Não só exportar porque é português mas exportar porque é bom, exportar aquilo que tem qualidade, que é feito com a consciência do tempo em que vivemos e que, ao mesmo tempo, tem a coragem de propor novos caminhos, mostrar claramente que são propostas criativas, de qualidade. Penso cada vez mais em termos dessa troca e desse intercâmbio, desta co-produção, pois parece-me que ela é mais efectiva do que uma política ou do que uma directriz governamental, que também são importantes, mas este trabalho de campo será mais produtivo a longo prazo. É bom começarmos a colaborar com outras instituições, a cruzar as coisas e ir dizendo: muito bem, há estes projectos interessantes e há estes artistas que trabalham nestas áreas em Portugal, já os conhecem? Estão aqui. É deste modo que ocorre a internacionalização e a verdadeira inclusão nas redes internacionais, algo que é expansível às várias áreas de expressão.

Como é que é hoje a abordagem e a comunicação da cultura portuguesa no plano internacional? Uma vez que já não temos a questão da especificidade portuguesa, identitária, será mais difícil fazê-lo?

A abordagem tem de ser pela qualidade e pela actualidade das propostas. Não subscrevo a ideia de que existem especificidades nacionais mas penso que há áreas, falando nas diferentes expressões do design, em que nós somos capazes de olhar e detectar algumas tendências. Não diria especificidades do design português, mas algumas tendências que têm a ver com a recuperação de alguns materiais tradicionais, com um trabalho mais moderno desses materiais, como a cortiça, o têxtil ou a cerâmica. De igual modo pode detectar-se também a permanência de grande qualidade do trabalho manual. Mas a forma de exportar, volto a sublinhar, tem que ser sempre através da marca de qualidade e de actualidade. E é por isso que faço esta ponte. Ser português, se é possível usar este chavão no início deste século XXI, tem que significar a consciência do tempo presente, o mundo global onde vivemos, e, simultaneamente, da especificidade do nosso local. Toda a criatividade, pelo menos no campo do design, deve também espelhar e reflectir sobre este tempo/espaço. Não é só espelhar textualmente, é espelhar e reflectir sobre ela. A exportação ou internacionalização até já está a acontecer, nós temos designers portugueses que têm já claramente um posicionamento internacional evidente e quando o têm não aparecem como designers portugueses, porque isso num mundo global perde importância, não tem significado. Aparecem de braço dado com outros nomes pela qualidade que têm, pela reflexão que denotam, pela consistência do trabalho, e isso sim, é uma mais valia.

Achas que este é o Museu do Design ou um Museu de Design. Ou seja, ele cobre o espaço alargado do design contemporâneo?

Na minha opinião, deve ser um Museu de Design, uma casa para todas as expressões de design. Nós temos uma excelente colecção, que é sinónimo de uma visão e de uma sensibilidade singulares, de Francisco Capelo, que nasceu e que foi sendo constituída com grande saber e de um modo contextualizado. O resultado é uma colecção que em termos internacionais oferece uma representatividade do que foram as principais tendências e autores do século XX. As peças, de grande sofisticação e requinte, denotam o gosto do próprio coleccionador e também o conhecimento que ele tem em relação à evolução das formas. E é essa a colecção que nós temos que continuar a trabalhar, divulgar e reflectir. No âmbito do próprio trabalho que é feito a partir da colecção, abrem-se caminhos múltiplos. Vou dar um exemplo: se nós pegarmos numa peça da colecção, se virmos as questões que coloca, as relações que o designer teve com outros designers, com o meio económico, com o meio cultural, com tudo o que envolveu a sua criação, abrimos um caminho de trabalho plural que implica uma série de outras áreas disciplinares. Assim, por um lado, há a especificidade da colecção, por outro, a consciência de que um museu de design tem de ser hoje um espaço aberto à discussão em todas as áreas do design. Hoje a disciplina do design é muito mais complexa, muito mais diversificada em termos de campos de acção do que era há cinquenta anos e isso o museu deve também reflectir. Respondendo assim à pergunta: o MUDE não é um museu do design mas um museu de design. E nesse sentido, sim, é um museu de todas as áreas de design. Mas claro que há ainda um longo trabalho a ser desenvolvido nesse sentido.

Do que é que falamos quando falamos de design contemporâneo?

É um campo de tal forma amplo e ao mesmo tempo rico, complexo e importante que às vezes penso que o design sofre hoje aquilo que a arquitectura sofreu há alguns anos. Está na moda. Toda a gente fala de design mas quando se pergunta: mas o que é o design em concreto, as definições começam a ser cada vez mais diversas, mais amplas, mais indefinidas. Na minha opinião, o design deve ser entendido como uma disciplina de projecto, como um método de trabalho, e não apenas como uma disciplina que se desenvolveu sobretudo a partir da Revolução Industrial, que tem a ver com a produção de objectos úteis, ergonómicos, etc., etc.... O design é muito mais um processo de trabalho e daí a sua importância. Não está apenas relacionado com o acto de pensar objectos, pode ser pensar serviços, pensar atitudes, pensar a estrutura de governança da cidade, por exemplo. Pensar o governo dos diferentes equipamentos públicos, pensar um organograma de um equipamento público, isso também é fazer design. Construir este museu é um projecto de design, pois temos um problema, reflectimos sobre ele, investigamos e vamos estudá-lo. Depois propomos uma solução, que implica um desenho, um desenho em papel ou um desenho mental, com etapas, uma metodologia, e, por sua vez, um processo, que promove dois valores essenciais, a criatividade e a inventividade, já que se trata de propor novas soluções. Isso pressupõe a procura de soluções mais adequadas, mais inventivas e mais de acordo com o tempo presente. Quando há pouco me perguntavas sobre a definição do MUDE ser um museu de design ou um museu do design, a verdade é que o design é um campo tão amplo que é preciso ter atenção às fronteiras. E para mim as fronteiras não servem para excluir, servem para balizar, para ter a noção dos nossos limites. Pontualmente até os podemos ultrapassar, mas sabemos que estamos a fazê-lo, e porquê. Em termos das opções estratégicas do museu, as diferentes áreas do design acabam por concorrer e são importantes. O âmbito do design é tão amplo que para além de exposições sobre diferentes áreas, como webdesign, design urbano, de produto, de moda, etc., pode também significar espaços de debate sobre a própria forma do design estar a ser leccionado e trabalhado e ser o motor de promoção e desenvolvimento. Essa é para mim a riqueza do design nos nossos dias. É isso que o torna um factor absolutamente determinante para a identidade, para a cultura e para a economia de um país. Esta disciplina tem a capacidade de, metodologicamente e projectualmente, poder contribuir com métodos e ferramentas de trabalho. Desde o seu nascimento, a especificidade do design, que residiu na união entre a utilidade necessária e a componente formal/estética, colocou-o sempre numa relação estreita com as artes, a tecnologia, a economia, a indústria, a comunicação. Ou seja, tornou-o sempre muito mais multifacetado e polivalente.
Actualmente, é muito interessante olhar e perceber as várias tendências no design. Há claramente uma propensão para o design invadir o campo das artes plásticas, ser mais formal, mais comunicativo e explorar caminhos que foram tradicionalmente explorados pelas artes visuais. Mas também há outros caminhos muito interessantes, como por exemplo, o trabalho que aproxima o conhecimento do designer do saber mais tradicional e artesanal de comunidades locais que ainda persistem. De facto, com a globalização começam a constituir-se redes de designers, instituições, comunidades locais que desenvolvem projectos com esta particularidade, e que têm preocupações com a sustentabilidade, com a pegada ecológica, com a reabilitação de um saber tradicional, que ajuda a própria subsistência, manutenção e dinamização dessas comunidades, sobretudo localizadas num mundo menos desenvolvido ou subdesenvolvido. Normalmente olhamos para a globalização de uma maneira que evidencia o empobrecimento e a massificação, mas há outros caminhos e mais-valias na globalização. Hoje a globalização permite a profusão e a venda de objectos em muitos locais, nos mercados de Milão, de Londres, da Índia, e há inclusivamente designers a desenvolver um design cada vez mais social, mais preocupado com outros públicos. Por exemplo, o público da terceira ou da quarta idade, cujo número cresce com o aumento da esperança de vida, e que vem colocar problemas em termos de deslocação ou de vivência do espaço. Ou seja, há áreas de investigação muito diversas no design. Uma das áreas aproxima-se das artes plásticas e há outras com perspectivas diferentes. É essa diversidade que torna o design estimulante.

O que é caracteriza actualmente as relações entre a arte e o design contemporâneos? Permanece uma tensão identitária entre a arte e o design?

Estamos numa fase de namoro, numa fase de encantamento, de piscar de olho. Parece-me que esse piscar de olho deriva da possível crise que as artes visuais estão a passar e do alargar de fronteiras que se tem vindo a sentir no design. Penso que as relações não são de tensão como referiste que já houve, mas de uma certa atracção. Existe uma proximidade e um diluir de fronteiras que depois coloca alguns problemas em termos de terminologia e de definição. E coloca também questões para reflexão nestes dois campos, em termos de objectivos e de posicionamento dos designers e dos artistas, de como se colocam e de como é que se vêem a si próprios. Como designers ou como artistas? E isso é muito interessante de observar e acompanhar.

Que opinião tens sobre o panorama das artes visuais? O que é existe de mais interessante na criação contemporânea?

Já estive mais ligada à arte contemporânea dada a minha formação em história de arte. Hoje, apesar de mais distanciada, continuo a acompanhar e a interessar-me por ela. Olho-a de uma forma crítica e curiosa. Crítica no sentido em que muitas vezes penso que se vende gato por lebre, ou seja há trabalhos que estão a ser feitos hoje onde reconheço uma consistência, uma reflexão e uma solidez no trabalho. Não tanto no sentido de procurar novos meios de expressão, hoje pouco relevante dada a variedade existente, mas reflectindo sobre eles e propondo realmente um trabalho em que se denota uma coerência e qualidade plástica. Outras propostas parecem-me algo superficiais, muitas vezes coladas a referências passadas, mais ou menos conseguidas. Hoje podemos encontrar algumas propostas que me parecem alicerçadas em reflexões novas, mais frescas e outras que evidenciam a persistência de um trabalho que acaba por ser muito repetitivo e virado para si próprio. Por isso posso dizer que estou crítica e curiosa. Os trabalhos que mais me interessam são os que abordam as questões da luz, do espaço, da fotografia, da relação do homem com o transcendente. Gosto de ver, faço parte de um público regular de arte contemporânea, e fico curiosa pensando muitas vezes: vamos ver o que irá sair daqui....

O que é que o MUDE pode sugerir aos museus de arte contemporânea?

A sugestão é que os museus de arte se repensem olhando para o próprio objecto que expõem. Quando digo olhar para o objecto, refiro-me à sua natureza, à intenção com que foi feito, olhar para os suportes que utiliza e para a própria performatividade e efemeridade que as expressões contemporâneas têm. E que se repensem também tendo em conta o facto de serem espaços verdadeiramente contemporâneos. Que corram mais riscos. Foi sempre assim ao longo da história, particularmente em alturas de crise. Quando digo arriscar não é chegar à beira do abismo e cair, é arriscar com o sentido claro do risco, pensar com responsabilidade, propor novos caminhos e ter depois a coragem de avançar em conformidade com os objectivos e a visão que temos. É preciso estar aberto ao debate e à discussão, pensar outras formas de museu, não tanto em função dos edifícios mas em termos de programação e de desenho expositivo. É notória a existência de um debate em curso. Por exemplo, no Victoria & Albert Museum, sentimos claramente a diferença que existe entre as galerias permanentes e a programação temporária. É na programação temporária que encontramos um lugar de experimentação. E isso é fundamental.
Pessoalmente interessa-me, cada vez mais, reflectir sobre essa questão. Considero que os museus de arte contemporânea podem representar um novo espaço para a realização de uma obra de arte total, tal como Wagner referia. Tudo concorre para uma obra total: os objectos, a iluminação, o espaço expositivo, a circulação, o som, a cor, etc... Este pode ser um dos caminhos do museu, ser um lugar que oferece uma vivência sensorial que desenvolva as emoções e o conhecimento. É por aí que caminha o meu tema de doutoramento, quando tiver tempo para o realizar! Outra sugestão pode ser a de tornar cada museu um site-specific. Vou mesmo pedir a tua autorização para passar a utilizar essa designação. Posso?

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Acerca da densidade e do movimento

Parar e pensar... no mundo da arte

Bettina Funcke: Entrevista

100 Notes -100 Thoughts / dOCUMENTA (13)

Miguel Palma

A Falácia do Desejo

Una luz dura, sin compasión

El movimiento de la fotografía obrera, 1926-1939

Bárbara Coutinho: Entrevista

MUDE

Miguel Palma e Pedro dos Reis

Livro

Manuel Borja-Villel: Entrevista

O Reina Sofía é como uma cidade

João Fernandes: Entrevista

Tudo é possível quando falamos de Arte

David Santos: Entrevista

Museu do Neo-Realismo

João Maria Gusmão + Pedro Paiva

Bienal de Veneza 2009

Natxo Checa

Bienal de Veneza 2009

Paulo Mendes: Entrevista

Para uma arte política

Alexandre Pomar

Entrevista

João Pinharanda

Entrevista

10ª Bienal de Istambul

Gustavo Sumpta: Entrevista

RE.AL

Pedro Amaral

BAD BOY PAINTING COMICS

Raquel Henriques da Silva

Entrevista

Depósito

Anotações sobre Densidade e Conhecimento

Gustavo Sumpta

Primeira Lição de Voo Pobre não tem Metafísica

João Fonte Santa

O Aprendiz Preguiçoso

Luís Serpa: Entrevista

«Depois do Modernismo» & Galeria Cómicos

A acção do artista-comissário

Manuel J. Borja-Villel: Entrevista

MACBA

Miguel von Hafe Pérez

Entrevista

O poder da arte

Pedro Valdez Cardoso

Livro dos Actos

Salão Olímpico

Estudo de Caso

Alice Geirinhas

Nós, War & Love

Salão Olímpico

Livro

Pedro Gomes

Ter

Penthouse

Livro

Zonas de conflito. Novos territórios da arte

Projecto TERMINAL

Miguel Palma

Inventário artístico de um fazedor de raridades

João Pedro Vale

Terra Mágica

João Tabarra

LisboaPhoto

José Damasceno

Entrevista

Cristina Mateus

Entrevista

Vítor Pomar

Roteiro CAM

Pedro Sousa Vieira

Roteiro CAM

Fernando Lemos

Roteiro CAM

Carlos Nogueira

Colecção do CAM

Miguel Palma

Cemiterra-Geraterra (1991-2000)

Ângela Ferreira

Entrevista

Manuel Santos Maia

Entrevista

Vasco Araújo

Entrevista

Rigo

Entrevista

João Tabarra

O caminho sem fim

João Fonte Santa

A Regra do Jogo

Alice Geirinhas

Entrevista

Pedro Cabral Santo

Francisco Queirós

Entrevista

Ana Pérez-Quiroga

Diz que me amas

Lado a Lado

The First Step

Pedro Cabral Santo

Entrevista

Francisco Queirós

How could I miss you?

(Um) texto para os anos noventa

Arquivo contemporâneo

321 m2 – Trabalhos de uma colecção particular

Miguel Leal: Entrevista

Um Museu sem obras

Miguel Palma

Colecção de Arte Contemporânea IAC/CCB

Fernando José Pereira

Colecção de Arte Contemporânea IAC/CCB