Texto publicado a propósito da exposição Wishful + Thinking, de Miguel Palma
Curadoria: Sandra Vieira JürgensLocal: Galeria Baginski, Lisboa
Data: 04.05 – 04.09.2011
Desde os anos 90, Miguel Palma transita entre suportes variados, estabelecendo diferentes estratégias artísticas na formulação de formas e objecto híbridos, que tem em comum o estabelecimento de uma relação muito particular e produtiva com a realidade e com o espectador. Através da combinação de materiais heterogéneos e da alteração ou transformação dos valores funcionais, culturais e simbólicos dos objectos, o artista revela aspectos da percepção e conhecimento do mundo, que envolvem o espectador num campo de possibilidades de leitura a diferentes níveis.
Esta individual com o título Wishful + Thinking, que Miguel Palma apresenta na Galeria Baginski não foge à regra e caracteriza-se por ser um percurso expositivo por entre um conjunto de trabalhos que constitui uma metáfora visual para a expressão da impotência e força da vontade humana, com múltiplas referências a um universo de experiências de construção de realidades paralelas (reais ou ficcionais, passadas ou visionárias), que o artista decidiu expressar metaforicamente no título desta mostra individual.
Diremos à partida que o pensamento projectivo, o fetichismo material e a falácia do desejo são os três principais eixos desta exposição. No primeiro espaço da galeria, à entrada, antes mesmo de ver o objecto central da exposição, defrontamo-nos com uma área onde se combinam referências escultóricas, plásticas e diferentes projecções de situações de sublimação idealizada, relacionadas com um modelo automóvel de características desportivas, o Lamborghini Countach, veículo de culto produzido em Itália entre 1971 e 1990.
Nessa combinação de imagens podem destacar-se por exemplo as inúmeras narrativas sobre esse “símbolo luxo” dos anos 70 e 80, que tanto derivam de autênticas reportagens, de abordagens históricas, visões técnicas, culturais, sociológicas, como de apropriações de natureza ficcional, onde confluem a atribuição de valores eróticos sobre o objecto em causa. De uma forma ampliada, o que aí se representa é a dimensão fetichista, ideológica, psíquica das acções de atribuição de valor simbólico aos artefactos que nos rodeiam. Falamos pois em representações baseadas na projecção emocional, por vezes irracional, de desejos sobre a realidade, em aspirações, desejos, que configuram um pensamento projectivo, por vezes visionário, que escapa à explicação racional e à racionalidade imposta pelo real.
Sendo este o ponto de partida desta exposição: Do outro lado o que encontramos? O que é que vemos?
O centro físico e nevrálgico do percurso expositivo, em que Miguel Palma adopta aparentemente um formalismo enigmático que se contrapõe e distancia do conteúdo das imagens, da amálgama visual, impura, humana, acidental que o observador testemunhou anteriormente.
Nesta transição de espaços, o que ocorre é uma espécie de experiência de saída do domínio da imagem e de aproximação e avanço para uma presença asséptica, mais abstracta, que parece neutralizar e transformar a carga simbólica e as evidências visuais que estiveram diante de nós. Num espaço vazio, off-screen, entre a condição de veículo utilitário e de obra de arte autónoma, é exposta uma réplica do veículo com aberturas visuais para a essencialidade e simplificação formal do legado minimalista, como claramente indicam as geometrias estruturais do volume descarnado, despido de acessórios e acentos ilusionistas ou metafóricos.
O que vemos agora é tão somente um objecto aparentemente com um valor emocional nulo, destituído de projecções, na condição de potencial, inacabado. Independentemente deste estado de facto, esta peça de Miguel Palma pode ser interpretada a partir de uma outra reflexão que, ao invés da oposição entre realidades heterogéneas, explora o sentido de uma dualidade sem oposições.
Na transposição efectuada, de um fenómeno cultural para outro contexto, o que se altera é tão somente a questão da perspectiva. Efectivamente, a leitura da peça situa-se invariavelmente entre o que foi projectado sobre este objecto de luxo e o modo como é apresentado. O factor unificador destas abordagens é ele ser por excelência, em ambos os contextos, profano e sagrado, um objecto de exposição, um objecto de culto, mais evocado pelo seu valor icónico do que de uso, como demonstram algumas das evocações do conjunto de imagens que passam no monitor na sala ao lado.
Assim, podemos propor que o carácter provocatório da obra de Miguel Palma não reside nos artefactos excêntricos que apresenta nas suas exposições. Palma aplica uma outra estratégia, alarga o campo de possibilidades, questiona as categorias, a definição restrita dos contextos e expõe o que configura ser um dos princípios essenciais da sua prática artística: a arte, talvez seja à semelhança de muitas outras dimensões triviais da existência humana, uma materialização dos desejos, das aspirações, das ideias, dos projectos - é a continuação da falácia do desejo e do fetichismo por outros meios.