Entrevista a Alice Geirinhas, intitulada «Olhares Cruzados».
Publicada na revista arq./a: Arquitectura e Arte, n. 18, Março/Abril 2003, pp. 80-83. ISSN: 1647-077X.
Artista plástica e ilustradora, Alice Geirinhas estabelece através da sua obra pontes de ligação entre diferentes territórios da cultura literária e visual contemporânea. O olhar analítico e o registo autobiográfico são o modo e a matéria a partir da qual tematiza aspectos múltiplos da vivência humana.
As suas obras dão a impressão de ser uma observadora muito atenta e lúcida do comportamento humano. Existe da sua parte a vontade de traçar o retrato de uma época?
Sim, talvez exista de forma intuitiva essa necessidade de recriar o retrato do tempo em que vivo. Ou seja, começou por ser assim. E quando digo que foi de forma intuitiva, refiro-me à minha primeira exposição individual, em que retirei a ideia de um dos media, da televisão. Eu estava a ver televisão, isto em 1995, e passava no telejornal uma daquelas reportagens sobre uma reunião, ou da Câmara ou do PSD, algures para o Norte. Já no final, vejo a imagem de uma mãe, sentada numa daquelas grandes mesas de jantar, a compor a gola do filho, que era o estereótipo do beto, beto porque tinha um pullover amarelo em bico e por dentro uma camisinha às riscas azuis e brancas. E foi quase de imediato que comecei a escrever a frase: – «A minha mãe nunca me ensinou a consultar uma enciclopédia». Portanto, a partir dessa imagem, fiz quase um retrato da minha juventude passada em Viseu e das pessoas que me rodeavam. Daí o subtítulo da peça – Canção da Classe Média Visieense dos anos 80 laranjas. Nos anos 80, Viseu era o «cavaquistão» e sempre foi uma cidade muito conservadora. Essa primeira abordagem foi intutitiva, mas é claro que agora faço questão de pensar mais as coisas, de estar atenta e de envolver outras pessoas, como foi o caso da exposição na galeria Marta Vidal.
É um trabalho autobiográfico?
É claro que há um sentido muito biográfico, mas acho que tudo aquilo que me rodeia faz parte de mim própria. Sou eu e os outros e os outros em mim. Há uma desidentificação do eu.
E existem alguns elementos de ficção?
Não, pego mais em situações concretas. Por exemplo, em A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer #2 apresentei quatro histórias. Três delas são de pessoas que eu conheço e a quem pedi autorização para resumir a vida em quatro momentos. Uma é a avó da minha filha, a outra é uma amiga minha francesa, e a terceira é uma professora que era amiga minha da escola; a quarta é uma junção de duas mulheres, onde recriei uma espécie de ficção a partir do estereótipo de mulher que deseja o poder e tem uma vida muito ligada aos esquemas de hierarquias sociais. A parte mais autobiográfica, aquilo que eu fui buscar à minha vida, foi, por exemplo, a escolha das escritoras: a Adília Lopes, a Maria Manuela Stocker e a Sara Adamapoulos. E não as escolhi só porque gostava do que elas escreviam, fui buscá-las pela nossa vivência, pelo nosso passado. Quis registar isso, propondo que elas escrevessem as tais histórias de mulheres.
Nessa exposição, A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer #2, deu particular atenção às problemáticas da condição feminina. Pode considerar-se um tema do seu trabalho?
É um tema central, mas já está a tomar outras direcções. Nas duas exposições anteriores, existia o lado narrativo de contar uma vida em momentos muito precisos, com uma linguagem quase publicitária, e se fosse preciso, resumindo uma vida inteira em 4 ou 9 desenhos. Nesta exposição que estou a preparar, deixei a narrativa e existem só retratos mudos de pessoas muito idênticas. São grupos de três mulheres, módulos muito minimalistas no registo formal e na forma como se repetem. São retratos frontais, quase obsessivos. No entanto, os títulos referem-se a pessoas que eu conheço, ou seja, são nomes de pessoas que de alguma maneira fazem parte da minha vida, dos meus anseios ou receios. Não há um retrato físico, nem psicológico.
Em que perspectiva é que se coloca? Por vezes revela um flagrante sentido anedótico, por exemplo na maneira como expõe estados psicológicos de insatisfação, de solidão, e relações de força baseadas em diferenças de valor geracionais e culturais?
Eu acho que faço parte de uma geração que, devido à situação política e histórica do país, viveu esses conflitos geracionais de uma maneira muito forte. Talvez por isso fale deles. Eu tinha 10 anos no 25 de Abril e passei a fase da adolescência nos anos 70, num país em perfeita mudança. Nessa altura existia de facto um conflito de mentalidades, o país tinha dado uma reviravolta, e muita dessa gente de quinze anos andava um bocadinho perdida a tentar perceber que não era aquele o modelo que nos tinham ensinado. Depois sou uma observadora muito irónica, quase poderia ser cartoonista, só não o sou por mero acaso. Tenho esse lado irónico e de registo, capaz de apanhar o ponto central das situações, de ironizar e de fazer pensar sobre as coisas. Eu acho que a ironia é uma das melhores formas de pensar sobre as coisas.
Normalmente começa por escrever o texto?
Varia. Muitas vezes começo com a escrita e com o desenho em simultâneo, ou seja, esboço desenhos e ao mesmo tempo escrevo. Também já houve casos em que escrevi primeiro o texto e depois fiz os desenhos. Mas normalmente o meu processo de fazer os trabalhos é semelhante ao dos criadores de banda desenhada, quando são eles os autores do texto e não trabalham sobre o texto de alguém.
Apesar de ter uma formação artística em Belas Artes, o sua obra não pode ser dissociada do facto de ser ilustradora. A que campo pertence?
Às vezes penso que não pertenço a nenhum lugar. Estou numa espécie de limbo, entre uma coisa e outra.
No seu entender faz sentido sublinhar essa «diferença» ou particularidade?
Agora como ilustradora não tenho publicado, mas estou ligada à Bedeteca e à organização de exposições. É uma coisa que eu não escondo. É engraçado porque em Portugal a ilustração foi uma prática muito comum, mesmo na publicidade, e é impressionante, nos jornais dos anos 40 era tudo desenhado. Muitos artistas fizeram isso no início da carreira, mas parece que esqueceram ou têm vergonha da noção de baixa cultura. Nessa época, havia de facto essa hierarquia das coisas, hoje não. Acho que foi por isso que o Paulo Mendes, depois da minha exposição na galeria Zé dos Bois, me convidou para entrar na mostra Zapping Ecstasy, a mim e ao Fonte Santa. E foi curioso, porque apesar de sermos da geração de oitenta e de termos andado nas Belas Artes, tanto eu como o Fonte Santa, não integrámos essa geração, fomos integrados na geração seguinte.
Alice Geirinhas nasceu em 1964, em Évora. Estudou Artes Plásticas – Escultura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. A sua primeira exposição individual, A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer, foi realizada na Galeria Zé dos Bois em 1995, no âmbito da apresentação do colectivo artístico Sparring Partners (com João Fonte Santa e Pedro Amaral). A título individual, também expôs Alice na Bedeteca de Lisboa (1998), Como Cozer Um Ovo Em 3 Minutos no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (com João Fonte Santa, 1999), A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer #2 na Galeria Marta Vidal (Porto, 2002) e Thieves Like Us (como Sparring Partners (Lisboa, 2002). Actualmente prepara a mostra A Nossa Necessidade de Consolo É Impossível de Satisfazer #3, na Galeria António Henriques, em Viseu. De entre as exposições colectivas que integrou, destacam-se: Lisboa Fora de Horas (1995), Zapping Ecstasy (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 1996), X-Rated (Galeria ZDB/antiga loja Olaio, Lisboa, 1997), Em Torno de Camilo - II Bienal de Famalicão (Fundação Cupertino Miranda, Famalicão, 1997), Anatomias Contemporâneas (Fundição de Oeiras, 1997), Cash & Carry (Agência 117, Lisboa, 1998), (A)casos (&)Materiais #1 (CAPC, 1998), Bienal da Maia 99 (Maia, 1999), Ruído (Cesar Galeria, Lisboa, 1999), Phallus Ansiety-W.C. Container (Artes em Partes, Porto, 2000), Urbanlab.bienal maia_2001 (Maia, 2001), 90' For Sale (Galeria Marta Vidal, Porto, 2001), 7 Artistas ao 11º Mês (Artemosferas, Porto, 2001), Sparring Partners Vs. Tone Scientists (CAPC, 2001), The Sparring Partners Academy Art Collection…(Galeria ZDB, 2001) e Lost in Music (casa particular desabitada, Lisboa, 2002). Simultaneamente à apresentação do seu trabalho nestas diversas mostras, Alice Geirinhas desenvolveu outros projectos na área da ilustração e da banda desenhada. Foi co-editora do projecto Vaca que Veio do Espaço (1986-89), participou na criação de fanzines (Facada Mortal, Tom Sida Magazine, Joe Índio) e colaborou em diversas publicações: O Combate, O Independente, Bíblia, Público, Quadrado (Bedeteca de Lisboa) e revista Livros. A sua obra está representada nas seguintes colecções: Portugal Telecom, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra e Jorge Silva.