João Pedro Vale

Terra Mágica

Livro sobre a obra de João Pedro Vale, intitulado Terra Mágica. Porto: Mimesis, 2005. ISBN: 972-8744-55-2.

Advirto o leitor de que não se fará uma grande história, romanceada a partir da análise da obra e trajectória de João Pedro Vale. Talvez porque normalmente já associamos o registo ficcionado ao trabalho do crítico e do historiador de arte, muitas vezes até pela falta de precisão e objectividade das suas leituras. Sugerimos um outro enquadramento, mas nem sequer a realização de uma súmula ou um levantamento documental da sua obra. Assim, ao longo deste ensaio tentaremos articular esta abordagem de acordo com a perspectiva que o próprio artista tem do processo criativo, da sua atitude perante o espectador, de como entende a obra e os diferentes níveis de significado que lhe são inerentes. Como qualquer artista, João Pedro Vale desejará que a sua obra possa ser encontrada e recriada, em relação e em simbiose com as diferentes vivências do espectador. A interpretação que aqui se faz não poderá escapar a seguir um determinado sentido. Como leitura única que não é, não recusa outras possibilidades, nem outras abordagens e outros contextos.

A ficção/construção ficcional tem uma grande importância no universo imaginário de João Pedro Vale. De um ponto de vista geral, boa parte das suas instalações escultóricas mais recentes surgem aliadas à ideia de ficção. Muitos dos seus trabalhos fazem referências a personagens célebres da literatura infantil e a narrativas ou filmes que na infância lhe ficaram na memória. Porque foram lidas ou vistas por todos, podem ser partilhadas pelo espectador, sem que, porém, este possa reconhecer ou identificar os valores morais atribuídos, bem como os modelos de comportamento que deram forma à sua função didáctica. As instalações escultóricas de João Pedro Vale não ilustram estes elementos, as histórias e as figuras servem-lhe de ponto de partida para desenvolver uma extensão ficcional. No seu trabalho altera o significado das acções das personagens, dos acontecimentos narrados, apropria-se das suas imagens e desloca-as para outro campo de interesses, levantando questões que o mobilizam. Determinante é também o plano da visualidade e a atracção plástica que as imagens destes reinos do maravilhoso exercem em João Pedro Vale. A cenografia, a arquitectura, os adereços, os vestidos e os materiais, com os seus tecidos, as suas texturas e cores, são alguns dos elementos que permanecem na sua memória e podem ser apontados como parte fundamental da imagem de riqueza e do fascínio que encerram.

A entrada num outro mundo

Estavam tão altas, que davam a impressão de alcançar as nuvens. João, que gostava de aventuras, resolveu trepar na árvore que se formara, até atingir o alto. Depois de levar algumas horas subindo, chegou a um país estranho.

Feijoeiro (2004), por exemplo, é uma peça que o artista instalou no Claustrillo Mudéjar do Monasterio de la Cartuja de Santa María de las Cuevas, por ocasião da I Bienal de Arte Contemporânea de Sevilha, realizada em torno do título La alegría de mis sueños. João e o Pé de Feijão, foi a história que serviu de ponto de partida a João Pedro Vale na criação da instalação que transformou aquele claustro num lugar temporariamente habitado por uma grande árvore, cuja grandeza transmitia o seu domínio sobre o espaço: o tronco e as ramificações entrelaçavam-se e expandiam-se para os lados e para cima, crescendo em múltiplos sentidos a partir da fonte que ocupa o centro deste jardim. Com formas trabalhadas em arame e revestidas a collants de vários tons de verde que reproduzem e reinventam as formas do mundo botânico, João Pedro veio estabelecer uma referência directa à árvore trepadora do conto e das suas ilustrações, mas também ao Jardim Secreto, e a todo um universo que se distancia da natureza. Com a ligação que estabelecia à actividade onírica e à fantasia, ele concebeu um mundo «não natural», deixando em evidência um movimento de ascensão, de passagem para um outro plano, que dava acesso a um outro cenário, ao que se situa do outro lado da realidade, ao paraíso sonhado. Todavia sendo a árvore, sobretudo a trepadora, uma imagem que podemos aliar simbolicamente ao crescimento, ao desabrochar, cabe lembrar que ela pode igualmente estar associada à ideia de enraizamento e à impossibilidade de mudar de lugar.

Da mesma maneira, na obra A culpa não é minha, de 2003, peça instalada pela primeira vez na galeria Módulo-Centro Difusor de Arte, João Pedro Vale havia já adoptado a imagem da árvore para lhe explorar o conteúdo simbólico e a carga imaginária frequentes nos mitos, contos e religião de todos os povos. E neles as árvores, tal como os comportamentos humanos, podem e são classificados de «maus» ou «bons». Neste trabalho, a partir de uma estrutura de arame revestida e atada com diversos tipos de cordas e de «crochet», João Pedro Vale apresenta um corpo escultórico de grande porte que reproduz morfologicamente a figura de uma determinada espécie arbórea: a «Moraceae Ficus Aurea», conhecida por «figueira estranguladora», que sendo considerada parasita, pode evocar a condição de dependência e a sensação de asfixia que deriva sobretudo de esta espécie crescer em torno de uma árvore existente, acabando por matá-la. Neste sentido, ela até poderá apresentar-se associada à ideia de morte, numa imagem que é reforçada pelas suas fortes raízes, que surgem a descoberto e têm a particularidade de existir nos dois extremos do seu troco. Por outro lado, esta estranheza relacionada com o facto de a sua forma não apresentar a parte superior da ramagem, a copa, leva-nos ainda a identificar as figuras da simetria, da semelhança e da indiferenciação como imagens fortes desta peça. O que nas associações agora indicadas pode induzir-nos a considerar vários aspectos e planos da existência: a identidade, a relação com o outro, o amor, a sexualidade. Acresce ainda a presença da placa de ferro onde se inscreve a expressão «mea culpa non est», que assim sugere uma posição de naturalidade e de defesa em relação a qualquer sentimento de culpabilidade.

Outro trabalho-chave na trajectória do artista é I Have a Dream (2002), instalação onde a magia e a inserção do espectador num universo imaginado são aspectos significativos de uma acção artística que opera em planos de significado abrangentes. A instalação é composta por um balão de ar quente, feito em tecido cor-de-rosa, cuja ideia e forma se baseiam na construção do palácio do conto A Bela Adormecida, com as suas torres fortificadas segundo a versão de Walt Disney. Trata-se do castelo onde dormia a princesa encantada, mas que aqui surge – apesar das centenas de pequenos balões que o enchem – como um corpo adormecido e não flutuante que constrasta com a imagem de castelo no ar e com a imagem senhorial do palácio do conto. Esta instalação – que foi desenvolvida para o espaço de exposições do Lugar Comum, na Fábrica da Pólvora de Barcarena, em Oeiras – parte ainda de outras referências, como o livro infantil «Anita no Balão», a acção cívica de Martin Luther King na defesa das minorias e, sobretudo, a obra Antes que Anoiteça (1991) do escritor homossexual cubano Reinaldo Arenas, adaptada ao cinema por Julian Schnabel em 2000, com o momento ficcionado da biografia do escritor dissidente mostrando a sua tentativa imaginária de escapar de Cuba num balão de ar quente. Esta peça foi ainda montada no ano seguinte no Edifício Artes em Partes, no Porto, no âmbito do projecto IN.TRANSIT, ocasião em que integrou a exposição Sweet Dreams e foi instalada pelo artista junto de um mapa onde ele localizava – através de áreas bordadas em vários tons rosa – os países em que existem ainda leis que punem a homossexualidade. Dessa maneira, João Pedro Vale veio reforçar aspectos que já se salientavam, cruzando as referências e o sentidos que se destacavam da interpretação da obra: a grande ficção que tanto pode expressar a imaginação infantil, o poder de acreditar em fadas e princesas, o sonho, o desejo de viajar, a luta pela liberdade de expressão, a possibilidade de realizar a fuga. E mais ainda, a hipótese de reforçar o sentimento de esperança e a dimensão mágica, lúdica mas também política da intervenção artística. Como salientava o próprio artista a propósito de uma parte do balão estar sobre o parapeito da janela, o que importa é a magia: «O balão nunca poderá sair do edifício, mas as janelas abertas, juntamente com o mapa, podem levar o público a imaginar aquele objecto a subir em direcção ao céu.»[1]

Ficção e Falsidade

Gepeto era um carpinteiro que vivia sozinho e sonhava ter um filho. Um dia, ele decidiu fazer um boneco de madeira, que ganhou vida graças ao seu desejo.

– Serás o filho que eu não tive e vou chamar-te Pinóquio.
Nessa noite, uma Fada Madrinha visitou a oficina de Gepeto e ao tocar Pinóquio com a varinha mágica disse:
– Vou-te dar vida, boneco. Mas, deves ser sempre bom e honesto!

Fulcral na obra de João Pedro Vale é a aptidão imaginativa para descontextualizar a história dos contos infantis e produzir, a partir das suas adaptações livres, interpretações alternativas ao cenário seguro e universalmente conhecido dessas histórias. Nunca sublinha os valores didácticos atribuídos aos contos que todos conhecemos, ao exemplo moral que contêm e veiculam, mas dá antes expressão a um pensamento que permite ampliar o horizonte conceptual e o entendimento contido na literatura infantil. Este aspecto surge bem evidente numa instalação de 2001, When you wish upon a star, que o autor realizou para a antiga carpintaria das instalações do Museu da Electricidade, por ocasião da exposição Apresentação. O trabalho recupera a clássica história de um boneco de madeira, Pinóquio, mas para o artista esta narrativa pode, entre outras leituras, despertar a nossa atenção para o facto de Gepeto ser um homem, viver sozinho e sonhar ter um filho para lhe fazer companhia. Esta obra permite-nos ainda assinalar uma prática de trabalho que é característica do autor. João Pedro Vale tem evocado no seu universo associações metafóricas precisas mediante a atenção dada aos materiais, a sinais formais particulares e à enunciação de certas referências textuais. Na peça, Pinóquio surge realizado em tecido de cetim azul, em referência à Fada Azul, e apresenta um grande nariz de cetim com 300 metros de comprimento, que se encontra entre as bancadas da carpintaria e onde se vai repetindo a inscrição bordada When you wish upon a star, que dá título à obra.

A realização de peças a partir de determinados aspectos e apontamentos narrativos de filmes é também seguida em dois outros trabalhos, nos quais João Pedro Vale aborda questões de género, de identidade e diferença sexual, utilizando referências partilhadas pelo activismo e pela comunidade homossexual. É o caso da peça Dorothy (2001) em que recria o vestido de Judy Garland n` O Feiticeiro de Oz, associando-o às pernas de um manequim masculino; e de Scarlett (2002) onde concebe um vestido a partir do usado por Vivien Leigh em E Tudo o Vento Levou.

As realidades sociais, psíquicas e sexuais da vivência homossexual são ainda tema de outras obras de João Pedro Vale que não estão directamente relacionadas com narrativas fílmicas. Por exemplo, em Silent Pole (2001) ele procede à descontextualização funcional dos elementos que configuram a sua peça escultórica. A partir da apresentação de um mastro de nove metros de estrutura flexível (em lona de camuflado militar), o qual se encontra disposto na horizontal – impedindo o hastear de qualquer bandeira – e também da disposição de um altifalante votado à mudez, o artista faz referência à queda das ideologias e à lei do silêncio. Um tema já aflorado em Don’t Ask, Don’t Tell, Don’t Pursue (2000) quando referenciava essa imposição decretada à comunidade gay nas forças armadas dos Estados Unidos, e confrontava o espectador a essa realidade.

Imagens, falácias e equívocos

Do mesmo modo, seguindo esta estratégia de confrontação, João Pedro Vale apresentou algumas peças em que se debruçou sobre histórias e imagens que ajudam a definir o corpo das tradições de uma cultura e contribuem para a construção ficcional de uma identidade nacional. Por exemplo, em relação a Tell me lies, tell me sweet little lies (2000/01) João Pedro Vale comenta o desejo de «falar como as tradições em geral podem ser falaciosas. O que é o tapete de Arraiolos? Porque é que o tapete de Arraiolos é considerado uma tradição portuguesa?»[2]

Já no trabalho Português Suave (2002), ele constrói uma maqueta do Palácio da Pena utilizando cartão e fotocópias a cores de maços de Português Suave, com a intenção de promover com esses deslocamentos de materiais determinados encontros que permitem cruzar ficções e referências da história e da cultura portuguesa, tanto erudita como popular: o romantismo português, o imaginário revivalista, os traços da identidade nacional segundo a visão oitocentista, a Política do Espírito lançada pela ditadura salazarista, e a imagem que esta traçou de si mesma e do povo português.

Esta ideia de indagar certos aspectos da identidade nacional e do contexto cultural português está também presente em duas peças de 2004. Trata-se de Bonfim (2004) e de Barco Negro (Milagre) (2004), dois trabalhos que resultaram de um processo de investigação que o artista traçou em torno da recuperação de barcos naufragados. Para a instalação Bonfim (2004), João Pedro Vale pesquisa o culto do Senhor Jesus do Bonfim e o fenómeno da cultura popular brasileira conhecido pelas fitas do Bonfim, da Bahia, chegando ao conhecimento de que este era português de origem, mais concretamente da cidade de Setúbal, estando relacionado com a história de um náufrago que atribuiu ao Santo a sua salvação, e veio a dedicar-lhe a sua devoção. Assim, a partir desta história de mar e de viagens, de influências culturais entre Portugal e o Brasil, o artista realiza uma instalação formada por um barco reconstruído e forrado a inúmeras fitas de tafetá branco com a inscrição «Não há fim para o caminho». Uma expressão retirada do romance de Neville Jackson, No End to the Way[3], de 1965, que conta uma história universal passada entre dois homens e que aqui pode constituir uma alusão à infindável rede de encontros e desencontros, de aproximações e rupturas, em que se forjam as culturas e a vida.

Noutra obra conhecida, valendo-se do imaginário da cultura e da religião popular portuguesa, da evocação de milagres, de crenças e de cerimónias religiosas, populares ou católicas, realiza Barco Negro (2004). Nela procede à recuperação de uma embarcação e apropria-se de diferentes objectos feitos de plástico e outros materiais para dar presença a um barco mergulhado em simbolismo. São pães, flores, velas, figuras santas esculpidas em vela, fitas de cetim, parte dos rituais de muitas comunidades, que aqui testemunham a presença obsessiva do sagrado e os meios a que se entregam com vista a alcançar um resultado prático, a eficácia mágica e real. Não fosse esta ser também a imagem de uma ficção particular, contada por João Pedro Vale: «O barco encena uma espécie de narrativa: o náufrago ao tentar evitar o seu fatal destino, foi abdicando de tudo o que tinha em sua posse para tapar as fendas que se foram abrindo na embarcação.»

A identidade nacional é ainda o tema da obra Heróis do Mar (2004), peça em que se apresenta um farol marítimo baseado em representações ilustrativas de selos postais. Todavia, se estas construções são normalmente edificadas em alvenaria ao longo da costa como pontos de referência úteis aos navegantes, neste caso a preferência vai para uma construção frágil, de areia, cujo título evoca A Portuguesa, composição musical que simboliza a nação e o sentimento comum de ser português.

Fora de contexto

Juntamente com a reunião e cruzamento de referências, a sobreposição e a acumulação constituem um aspecto fundamental e uma operação recorrente na obra de João Pedro Vale. Elas têm expressão na junção de materiais e no exercício de cobertura e de camuflagem, na disposição de capas e de camadas que envolvem os objectos. É um recurso presente de maneira muito clara nas peças que formaram parte da sua primeira exposição realizada na galeria Módulo de Lisboa, em Abril de 2000. Tratava-se de um conjunto de peças – onde se integravam Can I Wash You? (1999), noventa barras de sabão azul e branco dispostas por forma a criar a frase em relevo; Please don´t go! (1999), uma peça formada por 3500 pastilhas elásticas com aroma de morango; Body Sculpture (2000); Beefcake (2000) composto por um haltere em esferovite e parafina revestido a bâton vermelho; Lick My Balls (2000), duas bolas de parafina com corante e aromatizante de tangerina, colocadas num cesto de basquetebol - no qual João Pedro Vale roubava o objecto à sua pureza e ao seu estado neutro, aplicando-lhes materiais com aromas e explorando os seus efeitos odoríferos. Ao incluir o cheiro, uma dimensão volátil na experiência artística, João Pedro Vale expande a experiência sensorial da obra e joga com o apelo da sedução, do sabor e da cor. Por outro lado está também a criar uma dinâmica de exposição que se distingue daquela a que nos habituámos, a que se baseia no campo do puramente visual e que se apresenta ao espectador no domínio neutro dos espaços do museu e da galeria.
Desse conjunto de peças fazia ainda parte um grupo formado por Touch and go! (2000) e We all feel better in the dark (2000), que apresentam em inscrições bordadas os títulos, e que como todas as outras evocam canções e citam refrões que potencializam a relação com o espectador. Era também o caso de Don´t leave me this way (2000) ou de outros títulos em que para abrir um leque de leituras feitas a partir das frases, João Pedro Vale serve-se do título para dialogar com o espectador e viabilizar a relação deste com a obra.

É assim possível relacionar estes trabalhos com um outro, posterior e que integrou a segunda exposição individual de João Pedro Vale: Are You Safe When You Are Dreaming? (2001), apresentado na galeria Cookie Snoei em Roterdão, e mais tarde adquirido pelo Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Trata-se de uma bóia em sabão azul e branco,  acompanhada de um texto que apresenta as regras gerais de um manual de treino destinado a formar nadadores salvadores, e de quinze bandeiras bordadas com desenhos demonstrativos de técnicas de socorro a náufragos, os quais descontextualizados e separados do texto que ilustravam, passam a resumir-se a puras situações de contacto físico que levam o espectador a reflectir no processo de codificação implícito aos jogos de comunicação.

A pergunta…

Embora a tradição e a codificação linguística sejam, obviamente, planos onde o artista pode indagar o peso da convenção, há outras esferas de construção normativa que não escapam ao seu interesse por expandir a significação. Em Goalball (2000), uma instalação apresentada no âmbito da mostra O Carteiro Toca Apenas Duas Vezes organizada pela Escola Maumaus no Museu das Comunicações em Lisboa, ele desenvolveu uma instalação com características de site-specific, a qual toma como ponto de partida o paradigma desta modalidade desportiva (o goalball do título) praticada por atletas portadores de deficiência visual. Na proximidade às actividades desenvolvidas pelo museu – nomeadamente as visitas guiadas para o público invisual – João Pedro Vale encontrou uma oportunidade de conduzir um trabalho de questionamento dos hábitos, das regras, e dos mecanismos de uniformização estabelecidos. A instalação, formada por acessórios do goalball – baliza, bola, vestuário desportivo – apresentava ainda, em texto, as normas de funcionamento e as regras do jogo . No texto fazia-se ainda menção às diferentes categorias com que se distinguem os atletas, seja por critérios de deficiência visual ou na identidade de género (masculino/ feminino); e a outras convenções e práticas normativas que vieram despertar a atenção do artista: «Neste caso não se compreende muito bem porque é que uma modalidade com equipas de três jogadores precisa de oito árbitros para controlar, porque é que continuam a ter equipas masculinas e femininas e para além disso a usar uniformes, com cores. Na realidade por muito que tentemos equacionar as coisas e perceber em que sistema é que vivemos, às vezes parece mais fácil prosseguir um determinado caminho porque ele nos foi incutido. Mas não será mais interessante seguir um caminho porque pensámos nas várias opções que havia a tomar?»[4]

A resposta…

É no questionar das certezas que se tece a relação do espectador com a obra de João Pedro Vale. Na ficção de encontrar respostas? Talvez não.
Os valores que norteiam a sua prática artística são sobretudo os da capacidade de deslocação, da flexibilidade, da aceitação do risco e da complexidade, da incerteza, da disponibilidade para a comunicação permanente. Os seus trabalhos não visam representar uma estratégia de autenticidade, ou pôr em evidência um sentido, hipoteticamente não revelado, mas desvelar mais sentidos. Nas suas obras não existe intenção alguma de descrever de forma precisa a verdade mais certa dos temas tratados. De igual modo, as peças podem ser mostradas de acordo com a apresentação original, ou podem ser dadas a ver sem a presença de todos os elementos que faziam parte da sua configuração inicial. E a propósito o artista afirma: «Não se trata de possibilitar ou não uma leitura mais abrangente do trabalho, mas sim diferentes tipos de leitura.»[5]

Permanece a magia. João Pedro Vale apega-se à fantasia das coisas inventadas, à magia de um mundo que não é o mundo, para dirigir o espectador para sentidos diversos que se podem sobrepor em cada trabalho. Em relação a cada peça podem existir temas e sentidos que são trazidos à luz ou que podem permanecer em sigilo. A sua obra constitui uma realidade imóvel e por isso mesmo escapa ao reducionismo que implica a enunciação de uma resposta final.

 

Footnotes

  1. ^ Óscar Faria, «O mundo cor-de-rosa de João Pedro Vale», Público, 1 de Junho 2002.
  2. ^ Sandra Vieira Jürgens, «Gestos indissociáveis da arte contemporânea» in Arq./a – Revista de Arquitectura e Arte, n. 7, Maio/Junho 2001, p. 79.
  3. ^ Nuno Alexandre Ferreira,  «Não há caminho para o fim» in Luzboa – A Arte da Luz em Lisboa, Lisboa, Extramuros, 2004.
  4. ^ Sandra Vieira Jürgens in idem p. 81.
  5. ^ Catarina Campino, «Reality Check sob vigilância» in Sob Vigilância. Oeiras: Câmara Municipal de Oeiras e Clube Português de Artes e Ideias, 2002, p. 68.

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