«Tecer / Desvendar a trama», texto publicado no catálogo da exposição André Alves – Arame farpado/Dinamite: O poder da circulação livre (pp. 7-14). Lisboa: Documenta / Fundação Carmona e Costa, 2015. ISBN: 978989-8834-00-3
Curadoria: Sandra Vieira Jürgens
Local: Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, em Lisboa, em organização conjunta com a Fundação Carmona e Costa e Comissão Fulbright.
Data: 5.11 – 18.12.2015
André Alves trabalha sobretudo com o desenho, explorando os limites e as concepções mais expandidas deste meio, através de processos criativos que envolvem múltiplas relações entre as formas plásticas, gráficas e escultóricas, a dimensão física e concreta da escrita bem como a dimensão sensível do discurso poético. A remissão e a pesquisa em torno de determinados conceitos e noções – como orientação e instabilidade – acções presentes desde cedo na sua prática artística, têm sido fundamentais num trabalho que procura partir de processos e exercícios especulativos em torno das dimensões políticas, filosóficas, culturais, psicológicas e existenciais dessas experiências para as traduzir através de bases metafóricas e plásticas. Nesta breve introdução à obra de André Alves tentaremos contextualizar os trabalhos apresentados na exposição Arame farpado / dinamite: o poder da circulação livre, no Camões, I.P., em Lisboa, no âmbito da Bolsa Fulbright / fcc atribuída ao artista em 2009 para a realização de um mestrado em Desenho nos E.U.A.
No percurso de André Alves são essenciais a inclinação ensaística e a concepção da prática artística baseada na reflexão, num modo experimental de activar pensamentos e de comunicar processos de investigação. Em cada obra ou projecto o autor trabalha a partir de noções, com as quais (se) interroga, desenvolvendo peças que implicam frequentemente uma experiência de escrita e a produção de desenhos textuais.
André Alves investe fortemente no poder da palavra, disseminando-a, o que se reflecte tanto na sua obra plástica quanto na sua escrita, seja ela encarada de modo autónomo, per si, seja como parte inerente do seu discurso plástico. Nele, o espaço da escrita no desenho não se resume a uma expressão formal, nem diz respeito ao exercício expressivo e gestual do desenho de palavras sobre um suporte. Tampouco essa acção escrita procura a verdade ou a certeza. É uma escrita que questiona e se problematiza.
Muito frequentemente, André Alves trabalha numa zona de influência da poesia visual e concreta, desenvolvendo séries de obras em torno das formas e usos discursivos, que atenta à formação e à estrutura e dinâmica do discurso e dos usos das palavras, que joga com definições linguísticas, com a dupla natureza dos vocábulos, com os valores literais e metafóricos da linguagem. São vários os trabalhos do artista integráveis neste núcleo de projectos com escrita, existindo uma intenção poética, filosófica e política na sua utilização. Através de processos de inversão, sobreposição, falsos espelhamentos, cruzamentos, omissões de palavras, reposições de letras, André Alves sugere e cria situações de desafio linguístico: os seus trocadilhos, provérbios, polissemias lexicais e homonímias interferem, quebram e abrem interstícios e novas possibilidades de interpretação do discurso.
A palavra escrita não está inscrita apenas no seu desenho. Ela também existe, escrita, impressa e cortada, no seu trabalho de escultura. Podemos referir peças em que ocorre a fusão artística de elementos poéticos e escultóricos, como em Impasse: Armar a tenda / A tenda a armar (2012): através de um abrigo nómada e com recurso à inscrição das frases do título no tecido, o autor remete-nos para situações de desconforto, impasse, estagnação, mal-estar existencial e político e também para a necessidade de uma tomada de posição, por referência ao verbo «armar».
Se muitas das frases inscritas no seu trabalho podem ter uma grande abertura de sentido e suscitar maior ambiguidade interpretativa, casos há em que referenciam determinados acontecimentos e realidades mais concretas. Como na exposição Estado d’Época (2012), em cuja peça Todos temos que ir, o discurso adquire um peso contextual, referindo-se à situação da sociedade portuguesa em 2011, num ambiente pautado pela austeridade e precariedade, com índices elevados de desemprego e divisão social e geracional, que levam o governo a sugerir a emigração aos professores desempregados e posteriormente aos jovens em geral. Episódio entre muitos de uma desresponsabilização governamental pela situação económica e social vivida em Portugal, o convite à emigração, seguido por muitos portugueses, é captado pela peça no seu valor simbólico de agudização do sentimento de impotência perante o rumo, o discurso e as de/cisões políticas.
Podemos ainda destacar Nada Anda Nada (2014), peça que promove um efeito de inversão com a mudança de posição e a ordem das letras dentro das palavras. «Nada» e «Anda», que resultam da inversão das letras «n» e «a», criam também a sobreposição e uma relação espacial, de profundidade, entre elas.
Na área do desenho, em Leituras Interrompidas (2013), um jogo em linha horizontal e vertical de palavras cruzadas realizado a partir de uma colecção de provérbios que incluem o vocábulo «palavra», o artista apresenta desdobramentos e variações dos significados das frases, que conjugam associações como «As palavras são como as cerejas / As palavras vêm umas atrás das outras» ou «Palavra que te escapa / Espada que te ameaça».
Já em Problema ou Solução (2013), a escrita da frase «Ficar, a guardar a esperança» num desenho de parede, faz-se de interrupções plásticas, de intervalos e cortes de escrita, que motivam a associação paradoxal entre resignação e esperança. Tempos de decisões difíceis (2015) realizado no Laboratório das Artes, em Guimarães, é também um trabalho mural que inclui a grafia do título e em que a leve graduação de cor da primeira sílaba da palavra «decisões» muda o significado da frase: onde se lia «Tempos de decisões difíceis» passa a ler-se «Tempos de cisões difíceis» (2015), alusão à difícil situação económica e social contemporânea vivida num país prestes a fragmentar-se.
Alguns dos títulos das suas obras participam de um jogo que pode ter continuidade de projecto para projecto, estabelecendo-se um diálogo entre projectos expositivos, como acontece entre Tornar (2013) e Contornar (2013).
Um outro exemplo de obras realizadas a partir de materiais textuais é a série Material escavado, com trabalhos que decorrem da ocultação e cobertura de partes de texto impressos em páginas de jornais, livros ou compêndios. O resultado da sua intervenção são composições de estrutura abstracta, formadas por blocos de cor que omitem partes do texto, deixando aqui e ali visíveis determinadas palavras que podem ou não formar sentidos narrativos.
De forma muito concreta, o artista desenvolve uma relação atenta às linhas de desenvolvimento da história, desencadeando uma relação dinâmica com o passado, tal como uma atitude analítica/reflexiva com o presente, delimitando algumas das tendências mais características do mundo contemporâneo. Na exposição Arame farpado / dinamite: o poder da circulação livre, dada a curiosa coincidência cronológica de uma das patentes do arame farpado (Lucien B. Smith), da dinamite (Albert Nobel) e da primeira edição de O Capital de Karl Marx, André Alves dá continuidade à sua perspectiva autoral no domínio do desenho. Neste projecto, ele alude a diversas referências da história da contemporaneidade e da modernidade, para indagar aspectos da história colectiva e de organização económico-social, nomeadamente a tensão existente entre os conceitos e as experiências de restrição e liberdade, assumindo as diferentes dimensões expressivas, individuais, identitárias, territoriais, colectivas e ideológicas daí decorrentes.
A nível formal, a associação e o contínuo deslocamento dos sentidos, possibilidades e interpretações metafóricas referidas, manifestam-se sobretudo através de trabalhos com jogos subtis de deslocamento material, de linhas e colagens de padrões de grades, de arame farpado e vedações com interferências, sugestões e ilusões de óptica ancoradas na paradoxal associação entre o significado de restrição e uma prática de desenho explodido/expandido.
A partir desta base de trabalho, André Alves propõe-se observar e reflectir sobre a impermanência, o provisório, a incerteza, a imprevisibilidade, estabelecendo com essas noções uma relação produtiva e aberta que não encerra mas produz novas significações. São condições que caracterizam a sociedade contemporânea e que longe de constituírem estados negativos, revestem uma positividade, no âmbito dos valores constitutivos de um novo paradigma, resultado da passagem da modernidade para a época actual, em que os valores ideológicos e morais preponderantes da materialidade, racionalidade e certeza cedem lugar à ascensão da imaterialidade, emocionalidade e imprevisibilidade, seja na caracterização da cultura do sistema produtivo e no processo de desregulação da sociedade tardo-capitalista, seja no horizonte de um sujeito-projecto que se reinventa e questiona permanentemente, ganhando com isso a sensação de ser livre. Na exposição, de resto, perpassam elementos que indicam a relação paradoxal entre liberdade e restrição, dentro/fora, emersão/imersão, sobretudo nos trabalhos situados nas paredes da sala.
No ponto inicial do percurso expositivo, na parede do lado esquerdo da sala, encontramos a série O princípio da acção (2015), formada por três desenhos intitulados Explosão, O conhecimento é explosivo e Implosão, acrílico e lápis de cor sobre papel de algodão. A peça central deste tríptico, uma espécie de cartaz, tem inscrita a frase «O poder da circulação livre», e referências a um dos elementos essenciais desta exposição – a dinamite –, incluindo o desenho da patente original de Nobel. No sentido dos ponteiros do relógio, surge escrito «O / Conhecimento / É / Explosivo» e duas ilustrações acompanham e enquadram esta peça. Do lado esquerdo, o desenho de um pavimento de linhas diagonais traçadas da direita para a esquerda, que provocam a ilusão óptica de profundidade, mostra uma explosão em forma de nuvem. Do lado direito, o efeito sugerido é o de implosão, de abertura de um buraco num pavimento de linhas diagonais formadas da esquerda para a direita. As linhas do pavimento dos dois desenhos acentuam assim a peça central, que alude a um dos outros pontos de partida temáticos da mostra, o arame farpado, com a inscrição «A Grande Evasão».
Instalada do lado oposto da sala encontra-se uma outra série em que o arame farpado é o padrão principal do desenho. Pular a cerca (2015), é constituída por três desenhos que apresentam entre eles uma gradação de cor que vai do negro e do cinza ao branco e relações de contraste negativo-positivo. São peças caracterizadas por padrões e malhas de linhas diagonais, entrelaçadas, na sua sugestão de arame farpado, gradeamentos e vedações, e que nos remetem para o aparato de que se fazem fronteiras e divisões territoriais. Aqui os símbolos da sociedade moderna do controlo e da restrição, na sua dimensão disciplinar, coerciva, limitadora, aprisionadora, e na sua não circulação, reemergem após um período intermédio de porosidade e arejamento (decorrente do processo de globalização, com as suas promessas de circulação livre, intercâmbio e mobilidade), não apenas como memória mas como realidade reactualizada do presente.
Onde é uma fronteira (2015), apresenta três frases, escritas em cores diferentes, sobre lona impressa com um fundo de imagem de papel amarrotado, em que se multiplicam as opções de leitura, guardando uma relação de sentido entre elas:
O limite do visível é o limite do papel
Nada existe fora da imersão
Nenhum território apenas mapas
Os processos de tratamento da palavra, que já referimos, a plasticidade no uso de imagens e as várias experiências de leitura decorrentes dos trabalhos de André Alves ganham correspondência no uso flexível que ele faz do desenho, explorando os seus limites na feitura e na apresentação no espaço expositivo.
O seu desenho mostra efeitos plásticos de torsão, com a rotação, deslocação, desacerto das formas, linhas, padrões inscritos a grafite sobre o papel ou a parede ou construídos a partir de colagens de materiais como as etiquetas. Há deslocamentos de perspectiva, ilusões ópticas e por vezes uma sensação de fuga das formas, com a sugestão ilusória e aparente de movimento, de instabilidade e desestabilização dos elementos e da composição dos trabalhos que atinge o processo de leitura. Essa prática de «cortar», «puxar», «dobrar», «rodar», manifesta o desejo do autor de libertar o desenho, não apenas do seu enquadramento disciplinar mais convencional, mas também dos seus dispositivos de apresentação. O espaço da parede pode ser o local para a sua realização ou colocação mas há também o recurso a plataformas e bases de madeira assentes no chão ou mesmo a sua disposição espacial em acrílicos que transformam os desenhos em peças de instalação com dimensão escultórica. Esta prática tornou-se bastante visível logo a partir da exposição Contornar (2013), com a instalação de meios que tornavam menos discreta e menos autónoma a imagem e a presença do desenho no espaço e mais evidente a materialidade das suas novas molduras. Através da sua montagem ou associação a mesas de luz e painéis dispostos horizontalmente e em ângulos e planos inclinados destaca-se uma ocupação espacial mais expansiva do desenho, que extravasa a verticalidade, para acentuar a horizontalidade e a diagonalidade, e com elas uma perturbação sensorial complementar.
A exposição Arame farpado / dinamite: o poder da circulação livre, confirma estas práticas. Pólvora (2015) é uma das peças de desenho a grafite sobre papel apresentada num suporte em acrílico disposto verticalmente a partir do chão, mostrando uma imagem que convida à imersão através de um exercício de ilusão óptica.
Também uma das peças centrais – no pleno sentido da palavra – instalada no espaço central, é À nora (2015), um desenho/colagem quadrangular de múltiplas etiquetas disposto na horizontal sobre uma plataforma que, apesar de assentar no chão, parece flutuar. Tal como está exposta obriga-nos a olhar para o chão e a perceber que a sua posição no espaço dialoga activamente com os padrões presentes no tecto e no soalho do chão, espelhando a atenção e a relação que André Alves manteve com tudo o que diz respeito à materialidade do desenho, e aos dispositivos e características do espaço da sua apresentação. Em Remendo como remédio (2015), a pequena peça formada por linhas finas e frágeis, ziguezagueantes, dentadas, realizadas também com recortes de etiquetas gomadas, é instalada directamente no chão.
Essa flexibilidade na composição formal e instalativa do desenho vai de resto a par com o clima e atmosfera suscitados pela cartografia conceptual, pelo universo de referências e temas presentes na obra do artista. Desta maneira podemos falar do movimento sempre presente do pensamento, da leitura e do desenho, vislumbrando-os enquanto práticas de liberdade. Em jeito de exemplo podemos enunciar os nomes de outros projectos de André Alves realizados em 2015: Do provisório ao permanente, Instabilidade Permanente, Inquietude, títulos que nos situam perante estados construtivos de posicionamento e reposicionamento constante, de fluidez, onde é contínua a perspectiva de mudança e o potencial positivo dos momentos de desorientação e orientação espacial, territorial e existencial.