Texto «A questão da singularidade», publicado em João Fonte Santa: O Aprendiz Preguiçoso, Centro de Artes, Festival Sonda, 2007.
A exposição de João Fonte Santa intitulada Aprendiz Preguiçoso reúne um conjunto de trabalhos da produção artística do autor, numa iniciativa que constitui uma visão retrospectiva sobre registos que definiram um percurso e foram marcantes. Facto interessante, é que não sendo exaustiva em relação à quantidade de trabalhos expostos, nem por isso ficaram restringidas as possibilidades de conhecer um certo número de princípios que norteiam o seu exercício pictórico. Mais, na medida em que expõe um núcleo de obras de pendor autobiográfico, estas revelam uma zona reservada, a sua história particular, o seu modo próprio de estar, entender e fazer arte. O título desta exposição é bastante evocativo, na medida em que faz apelo a um percurso criativo e de aprendizagem que o próprio artista vem construindo com liberdade, independência e autonomia; sobretudo à medida do seu tempo, e dando espaço de existência a cada circunstância, cada experiência pessoal vivida em estreito contacto com o mundo envolvente.
Formado em pintura, João Fonte Santa desenvolveu ao longo dos anos 80 e 90 um percurso associado à realização e publicação de trabalhos gráficos, ilustrações e banda desenhada em diferentes projectos editoriais. Essas influências são uma das marcas comummente assinaladas em relação às influências formais, estilísticas e iconográficas do seu trabalho, mas não resumem uma via de investigação artística marcada pelo contínuo estabelecimento de correspondências em relação a muitos outros âmbitos e territórios do espaço cultural.
Com efeito, outras áreas da arte se vão inscrevendo no seu campo de actuação: Fonte Santa integra e desenvolve relações de associação e apropriação muito produtivas com a literatura, o cinema e a música, que atravessam a sua obra. Da sua vasta produção artística fazem parte trabalhos onde questiona as determinações morais e as normas de aceitação social a partir da cristalização de referências de autores «malditos» (caso de William S. Burroughs), da envolvência underground e da referência à cultura punk, e trabalhos de dimensão política, nos quais tece abordagens a situações da realidade social, cultural e histórica, assinalando operações e princípios que regulam o curso da sociedade humana. Guggenheim Starship (2002), Destruição De Luxe (2003) e Como ser um milionário (2005) são alguns dos trabalhos em que a referência à globalização económica, às potências globais, à estratégia e domínio militar e à sua tecnologia são questões em destaque.
Mas como referimos, com esta exposição João Fonte Santa mostra-nos uma série de trabalhos em que a expressão autobiográfica ganha relevo. Trata-se de um grupo de pinturas que nos remetem directamente para momentos da sua história pessoal. Nesses trabalhos exibem-se memórias individuais, que possibilitam um itinerário documental sobre situações reveladoras de uma determinada experiência de percepção do tempo, do contexto e da realidade cultural de um ciclo de vida. Nelas observamos um arquivo de imagens de grande formato que retratam as casas habitadas pelo artista, reuniões de amigos e episódios vários. O que assinalam concisamente tem a efemeridade das anotações fugazes que devem posteriormente servir à memória:
Travessa do Alcaide, 1998:
«Vou sair da Travessa do Alcaide. Aproveitando a casa ficar vazia, resolvi fazer uma festa-venda de Natal»
Janeiro de 99, Travessa das Almas:
«Desde que se acabou o gás no aquecedor que está cada vez mais frio. Salvam-nos os jantares com os colegas da Teresa».
Apresentando-se como fragmentos de histórias pessoais, o que é que constitui efectivamente esta série de trabalhos de João Fonte Santa?
Não existindo uma memória definitiva, sendo a fragmentação e a indefinição a sua base, o que está em jogo é o funcionamento da memória. Criar uma memória, afirmar a singularidade, perscrutar um espaço bio-social, são actos que nos devolvem a consciência e a perspectiva para analisar o nosso presente em relação ao nosso passado. Este é também um projecto político, na medida em que traz para o centro do debate aspectos de consciência histórico-política e de cidadania, com um potencial de reflexão assinalável sobre fenómenos cada vez mais extremos inerentes à situação histórica do sujeito contemporâneo, numa sociedade de consumo e de controlo – o processo de domesticação, desidentificação e uniformização das existências.
Como refere João Fonte Santa num texto que acompanhou a mostra Low Life, onde expôs algumas das obras aqui reunidas: «(…) Low Life enquadra-se tematicamente em torno da persistência da memória e da sua importância enquanto fenómeno de construção da identidade individual, processo de mais valia que se opõe à regragem coerciva a que o indivíduo se encontra sujeito ao longo de todo o processo iniciático e aceitação social. Daí que Low Life enfoque prioritariamente o desajustamento e a inadaptação, como forma desajeitada de procura.»
Interessante é também perceber como neste projecto João Fonte Santa estabelece um exercício particular de contra-corrente, tendo em vista grande parte do seu corpo de trabalho e das estratégias seguidas por muitos artistas contemporâneos que dissimulam e provocam o apagamento e dissolução do eu, da individualidade, da singularidade, com o sentido proposto de revelar e questionar o império das existências massificadas.
Essa dissolução da identidade tem sido objecto de reflexão e tema de muitas obras do autor. A título de exemplo vejamos as obras «Lost in Painting» e «This is not a painting» presentes nesta mostra, cujos fundos citam a obra plástica de Bridget Riley, situadas no quadro da arte Op dos anos 60, numa operação que reconfigura os registos impessoais, a despersonalização do gesto artístico e o distanciamento e as formas de mediação entre o objecto criado e o criador, de Duchamp à pop art, ao hiper-realismo, ao citacionismo, ao apropriacionismo e ao simulacionismo.
Todavia, para além das diferenças, e sendo aqui o anonimato a forma crítica de operar sobre a crescente neutralização e apagamento do ser humano, é de salientar a sua finalidade comum com os registos autobiográficos de intervenção de João Fonte Santa. Neles a identidade individual reafirmada, assim como a referência a um estilo de vida colectivo, de valores e modos boémios, instituem a oposição saudável à formatação e à rotina da existência ordenada e controlada dos nossos dias.