Exposição: qualquer coisa de intermédio
Artista: Catarina Botelho
Local: Pavilhão Branco - Museu de Lisboa / Galerias Municipais - EGEAC
Datas: 2020-01-19 – 2020-04-19
Curadoria: Sandra Vieira Jürgens
O projecto expositivo que Catarina Botelho apresenta no Pavilhão Branco é composto por uma série fotográfica e uma projecção de filme, ambas reflexões sobre a vivência contemporânea do tempo, a condição fluída do espaço urbano, o rompimento das lógicas organizacionais que o regulam e a proposta de uma contra-narrativa que compreenda o surgimento de possibilidades de existência esquecidas e invisíveis na cidade. O seu fulcro são, então, as resistências, humanas e paisagísticas, numa cidade e num tempo obcecados com o crescimento económico.
qualquer coisa de intermédio congrega vários núcleos de imagens, que nos colocam sobretudo perante paisagens marginais, incluindo composições identificadas como povoamentos das periferias e de centros urbanos. Num primeiro grupo de fotografias destacam-se terrenos baldios que funcionam como contra-imaginário da cidade neoliberal planeada para a maximização de uma certa ideia de actividade e eficácia. São espaços imprecisos, ocupados por árvores, arbustos, canaviais, onde se deixam observar amontoados de materiais e destroços de mobiliário abandonado, colagem de múltiplas texturas e cores, acrescentadas de coberturas e muros realizados com objectos encontrados aqui e ali — construções precárias de arquitectura informal, clandestina, de crescimento improvisado e orgânico. Maioritariamente constituem planos abertos sobre a paisagem, mas por vezes existe o seu contraponto, quando apenas vemos formações de objectos, restos de ocupações, apontamentos de gestos e acções passadas, através de presenças escultóricas improváveis, em planos fechados, estreitamento da memória.
Estes não são propriamente hiatos vazios, desabitados ou desocupados –embora não surpreendamos os seus habitantes ocasionais, sabemos que são locais de vida e de encontro –, mas espaços indefinidos ou indecisos, para recuperar a expressão de Gilles Clément, quando em Manifesto da Terceira Paisagem (2004) refere estes lugares desprovidos de utilidade e função. Seriam o negativo dos espaços sociais reconhecíveis e ordenados das cidades, com funções estabelecidas e marcas identitárias reconhecidas por todos, domínio da arquitectura que os distingue e valoriza, morada das estruturas produtivas.
A margem, essa, assume-se como espaço ainda não constrangido, onde certa liberdade, flexibilidade e mobilidade são condição do real que não cabe nas coordenadas que a lógica da organização e produtividade impôs a fatias contínuas da cidade, sempre que possível apagando ou diluindo qualquer percepção alternativa desta. Talvez por isso essa margem cause estranheza. Mesmo que não represente qualquer perigo real, ela é capaz de instilar desconforto e receio, pois tende a ser esse o efeito da diferença e da alteridade quando uma cidade se oficializa esquecendo parte de si mesma e da sua história, parte da sua população e das suas virtualidades. Por isso, num período caracterizado pela normatividade e pela exploração e gestão obsessiva de valores económicos, estas áreas representam a pausa possível no andamento contemporâneo da cidade, o espaço da contradição e excepção enquanto forma de resistência, projecção de possibilidades incertas, expectantes, divergentes. Aí residem a sua força crítica e o potencial do seu imaginário.
A reflexão sobre outras formas de viver a cidade manifesta-se nestas obras de Catarina Botelho tanto na atenção fotográfica que lhe merecem as construções precárias e ocupações temporárias, como na análise que o filme O Tempo das Coisas opera sobre a condição do sujeito contemporâneo num regime produtivista cujos valores pragmáticos e utilitaristas tentam instrumentalizar e governar todos os planos da vida humana. Uma das questões essenciais de qualquer coisa de intermédio é o horizonte da nossa existência numa organização socio-económica voltada para a produção e o crescimento: como contornar a mentalidade que domina a vida no contexto da sociedade tardo-moderna do trabalho, a qual não deixa espaço relevante a outras formas de experiência vitais para o ser humano? Nesse regime de crescente aceleração do tempo, de abundância da comunicação informativa e de exposição intensiva a estímulos, o que Catarina Botelho propõe é um filme de intensidade reflexiva, poética e política, onde o tempo sequencial das imagens e o respectivo ritmo solicitam a atenção e a disponibilidade do espectador. Nesta peça, a artista investe fortemente em conexões simbólicas que se estabelecem entre o tempo e o espaço, as imagens e a voz, situando-nos no espaço da casa ao som de relatos de experiências que desenham uma paisagem interior. Num tal quadro, a manifestação do tempo lento e improdutivo, do carácter introspectivo da observação e do pensamento e a experiência de viver aqui e agora, apresentam-se essencialmente como figuras de recusa, que nos reconduzem à dimensão sensível da experiência e das tensões psicológicas e existenciais que lhe são inerentes. Essa dimensão nunca está longe da ideia de cidade enquanto espaço de valorização e acolhimento inclusivo dos seus habitantes — e testemunho vivo dos seus esforços e dos seus sonhos.
Bibliografia
"Como um gesto de força”, conversa com Catarina Botelho e Sandra Vieira Jürgens in Buala