Texto «O estado dos museus: sucessos e fracassos do turismo cultural», publicado na revista arq./a – Revista de Arquitectura e Arte, n. 102, Maio/Junho 2012, pp. 86-89. ISSN: 1647-077X
No site da Tate Modern pode ler-se o seguinte aviso: a grande procura de bilhetes para a exposição de Damien Hirst em Londres aconselha a que os visitantes reservem as entradas com antecedência. O tempo para aquisição de bilhetes estima-se em uma hora e após a sua compra o sistema de bilhetes cronometrados implica, em média, quatro horas de espera.
Bem vindos ao turismo cultural! O aviso não deixa de surpreender mas nos últimos tempos tem-se multiplicado o número de episódios semelhantes, associados à afluência massificada de público às exposições e aos museus das grandes capitais. Se o fenómeno não é novo, pois assistimos ciclicamente à realização de exposições com grande efeito de popularidade, o que parece paradoxal é que esta tendência contrasta com a situação de crise vivida por muitos museus construídos nos últimos anos como parte de uma estratégia de regeneração económica e urbanística das cidades. Todavia, este sucesso longe de contrariar o cenário de crise, apresenta-se como uma tentativa de superação da conjuntura desfavorável através do aumento das fontes de financiamento. A estratégia passa por oferecer mostras de nomes mediatizados, que asseguram o interesse e a afluência do grande público, eventualmente reforçadas por campanhas agressivas e bem desenhadas de marketing, que incluem a comercialização de edições e objectos alusivos. O próprio mercado de arte necessita destas iniciativas que ajudam a aumentar o reconhecimento público de artistas e a incentivar os coleccionadores a investir em valores estáveis e legitimados do ponto de vista institucional.
A exposição de Damien Hirst está naturalmente traçada para captar as vagas de visitantes que se deslocarão a Londres por ocasião das Olimpíadas de 2012. E tem tudo para ser um sucesso cultural e turístico já que reúne as condições ideais para este tipo de modelo expositivo: apresenta-se como a maior e a mais exaustiva mostra realizada até à data no Reino Unido, de um artista polémico, britânico, que conta com algumas das peças emblemáticas e controversas do criador, como The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living.
Neste aspecto os mais importantes museus de Londres estão a ser implacáveis, no último ano sucederam-se exposições de grandes nomes como Gerhard Richter, também na Tate Modern, que atraiu uma multidão de visitantes, ou Leonardo da Vinci: Pintor na Corte de Milão que decorreu até 5 de Fevereiro de 2012 na National Gallery. Esta exposição, não apenas bateu recordes de bilheteira, como foi fonte de alguns problemas até agora pouco comuns no mundo da arte, a revenda de bilhetes para a exposição que no site de leilões online eBay foram «oferecidos» a 600 libras. Esta foi uma das alternativas desaprovada pela instituição mas que surgiu em consequência de se terem esgotado os bilhetes de reserva antecipada e as entradas de venda diária implicarem três horas de espera, antes das inevitáveis filas de entrada para a exposição.
Ora, se até há bem pouco tempo atrás o factor de atracção mediática eram os nomes dos arquitectos que desenharam novos museus, mais recentemente, até pela banalização do fenómeno, assistiu-se à aposta em nomes de grandes artistas clássicos ou contemporâneos. E é isto que pode explicar que nos últimos anos os museus estejam a atingir os maiores volumes de público da sua história. Quase 5,7 milhões de pessoas visitaram o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque em 2011, o número mais elevado em 40 anos e superior em 400 000 visitantes ao anterior. O museu atribuiu o aumento, pelo menos em parte, a três grandes exposições: a do estilista britânico Alexander McQueen, uma mostra de Picasso e uma instalação criada pelos artistas gémeos Doug e Mike Starn.
Mas isto é apenas uma parte da história. Sucedem-se os casos menos felizes. Paralelamente ao boom das grandes exposições, de grandes artistas, verifica-se o aumento do número de estruturas e equipamentos, muitas vezes de dimensão regional, que hoje se deparam com uma total falta de financiamento, seja público ou privado, assunto que tanto preocupa os gestores culturais norte-americanos, dependentes do suporte financeiro das empresas privadas que reduzem as doações em dinheiro ou em obras de arte destinadas a reforçar o legado das instituições, como os europeus, para quem os cortes públicos têm consequências de enorme gravidade.
Após os maiores anos de investimento imobiliário, deparamo-nos com um cenário negro para alguns museus. A museificação da paisagem cultural, a vaga de museus nascidos a nível global para modernizar países e regiões por intermédio da arte contemporânea, regenerar as cidades e contribuir para um turismo prometedor em termos de receitas, se em alguns casos foi extraordinariamente positiva porque havia falta de infraestruturas, revelou-se o fracasso de um modelo de museu associado ao turismo. Não apenas por o factor icónico e monumental de muitas das construções ser efémero – haverá sempre edifícios mais imponentes, mais monumentais –, mas porque a médio e a longo prazo muitos destes equipamentos não desenvolveram uma linha de programação cuidada. Não se tornaram úteis ou relevantes na perspectiva do turismo nem sequer de servir a população local que no fundo é quem suporta a existência da instituição, em períodos de baixa do turismo. De resto, desde há dois anos a situação financeira veio obrigar as instituições (nacionais, locais, privadas) a reduzir ainda mais a actividade e as programações. Muitos destes museus ficaram esvaziados, sem capacidade de efectuar compras e prolongam as suas exposições para lá do aceitável. Em Espanha, são muitos os centros que enfrentam graves dificuldades, como o Musac de León aberto em 2005 e o centro de arte La Conservera, inaugurado em 2009, em Ceutí, na região de Múrcia. Na Itália, o MAXXI – Museo Nazionale delle arti del XXI Secolo, desenhado por Zaha Hadid, inaugurado em Roma, em 2010, depara-se igualmente com a falta de financiamento estatal. Ou seja, em muitos casos a programação não consegue atrair visitantes e o turismo cultural mostra a sua face sombria. Mesmo o turismo de massas não é cego, gosta de nomes conhecidos e necessita de muitos recursos para ser seduzido. Adere ao que já reconhece, que é consagrado e popular. E esse é um dos seus problemas. Não dá margem à diversidade e o investimento em programações só é feito de houver garantia de retorno. O serviço público poderia ter um papel supletivo para apoiar outro tipo de programação mas os cofres dos Estados estão vazios ou investem cada vez menos em cultura.
Na Galeria Nacional de Atenas, de onde foram roubados um Mondrian e um Picasso avaliados em 6 milhões de euros e o Museu da Antiga Olímpia, os recursos são mínimos e as entradas de visitantes locais diminuíram estrondosamente e subsistem com visitas escolares e estrangeiros. Em Março, noticiou-se que as instituições culturais da Bósnia e Herzegovina, incluindo a Galeria Nacional e o Museu Nacional, em Sarajevo, estão em risco de fechar por tempo indeterminado devido a uma falta de financiamento e apoio estatal. O artista Damir Niksic ocupou a Galeria Nacional por 84 dias depois de esta ter encerrado em Setembro e também ocupou o Museu Nacional como um protesto contra o seu encerramento ameaçado em Janeiro. De resto, não assistíamos a tantas manifestações de revolta e ocupações contra os cortes orçamentais no setor cultural desde os anos 60 e 70.
O director do Museu de Arte Contemporânea de Casoria, perto de Nápoles, foi radical e no mês de Abril começou a queimar obras da coleção da instituição como forma de chamar a atenção para o acervo de mil obras de arte contemporânea que ele diz não receber nenhum apoio das autoridades italianas. «As milhares de obras que expomos estão condenadas à destruição, devido à indiferença do Governo» afirmou. Director do museu e também artista, Antonio Manfredi, havia começado por queimar em Março a obra que mostrou na última Bienal de Veneza, no ano passado, e pretende dar continuidade à iniciativa que apelidou de Art War, com actos semelhantes que contam com o apoio dos artistas representados no acervo.
Em Fevereiro de 2011 a Association Générale des Conservateurs des Collections Publiques de France (AGCCPF) publicou um livro branco de 130 páginas no qual criticava a situação dos pequenos museus franceses por falta de financiamento do Estado e a pressão da transformação dos museus em empresas. A crise afecta todos os museus e em alguns casos assistimos à criação de sucursais inéditas como a do Rijksmuseum, o museu nacional holandês que abriu um espaço no Aeroporto de Amesterdão Schiphol – o quarto maior aeroporto europeu em termos de total de viajantes, depois de Londres Heathrow, Paris Charles de Gaulle e Frankfurt – onde se fazem várias exposições, como a que se apresenta até 25 de Junho, Dutch Flowers, que inclui nove telas do século XVII pertencentes à colecção da instituição.
E se a tendência verificada de internacionalização dos museus e das fundações continua a decorrer, não deixa de experimentar entraves e obstáculos. A Fundação Solomon R. Guggenheim, responsável pela administração dos museus Guggenheim, decidiu recentemente cancelar a instalação de um novo projecto que desenvolvia em parceria com a BMW para o bairro de Kreuzberg perante o boicote dos vizinhos e das violentas ameaças recebidas que acusavam de ser esta uma operação para a conversão de zonas baratas em bairros de maior poder aquisitivo. De resto também o museu para Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, projectado por Frank Gehry e com inauguração marcada para 2015 – será a maior sede do Guggenheim no mundo, situando-se no empreendimento chamado Saadiyat Island que inclui uma filial do Musée du Louvre, desenhada por Jean Nouvel, um museu nacional concebido por Norman Foster, um teatro de Zaha Hadid e um aquário do japonês Tadao Ando – tem enfrentado críticas por suspeita de práticas ilegais que envolvem os operários, em grande parte imigrantes de países como a Índia e o Paquistão. A ONG Human Rights Watch denunciou a situação e um grupo de artistas promoveu um boicote ao museu por causa das irregularidades identificadas. Entre os artistas esteve o libanês Walid Raad, a iraniana Shirin Neshat, a libanesa Mona Hatoum, o alemão Harun Farocki, a palestina Emily Jacir e o indiano Amar Kanwar, alguns deles do Médio Oriente e de quem o museu necessita de negociar para construir uma colecção da arte que pretende representar.
Um dos traços mais evidentes dos últimos anos foi igualmente o ciclo de crescimento exponencial do número de bienais e eventos internacionais de arte contemporânea, também elas instituições do turismo cultural, e a paralela falência do seu modelo rizomático. Depois de terem tido uma grande importância pela visibilidade que conferiam a propostas experimentais menos institucionais, o dinamismo e a imagem da bienais enfraqueceu e são já muitos os seus sinais de saturação. A fragilidade das propostas conceptuais, a pouca reflexão sobre o significado e o contexto da sua localização, a presença repetida do mesmo círculo de artistas e comissários internacionais tem vindo a revelar o esgotamento da bienalização global. Com a sua situação económica agravada e com menos apoios em perspectiva, o recurso às galerias e aos institutos diplomáticos que podem apoiar a participação de certos artistas tem igualmente colocado em causa a autonomia e a independência da selecção curatorial, tornando muito mais difusas as suas diferenças de identidade, por exemplo com respeito às feiras de arte, cujo perfil é claramente comercial.
A Biacs – Bienal Internacional de Arte Contemporáneo de Sevilla após ter estado à beira do desaparecimento devido aos seus problemas financeiros e à incerteza gerada pelas dúvidas da Junta de Andalucia, inaugurará finalmente a sua quarta edição em Outubro mas num formato mais humilde, à escala do contexto actual. Muito pouco comum foi a abertura da Bienal de Gotemburgo, na Suécia, em Setembro do ano passado, que foi palco de um atentado terrorista que obrigou a polícia a evacuar o edifício Röda Sten, antiga central de aquecimento de comboios que foi transformada em centro de arte e onde estavam 400 pessoas.
Há pouco menos de três anos a situação a que agora chegámos seria impensável. Talvez fosse mais previsível o fracasso das bienais mas não o regresso das perspectivas mais comerciais que são argumento para justificar a potencialização de um modelo de museu associado à atracção de multidões, que se concentra numa programação destinada a cumprir critérios quantitativos e termina por enfraquecer tudo o que não encaixa na sua lógica de audiências. Os receios são muitos. As exposições blockbuster, bastante noticiadas nos orgãos de comunicação, dão a errada percepção de que a cultura se democratizou e está numa situação de grande crescimento, mas continuam a ser ineficazes. São um velho modelo e constituem a imagem errada do que deve ser o sucesso na cultura e no turismo cultural. Os pequenos museus e espaços culturais estão em risco real e é imperativo que surjam outras soluções mais eficazes que permitam exceder as expectativas de uma via única para a cultura, a asfixia ou a banalização. Os oásis culturais não podem desertificar o que existe na sua vizinhança. As cidades necessitam de grandes eventos mas estes não podem concentrar todo o investimento e reduzir perspectivas no que respeita à pluralidade de escolhas e opções no sector da cultura. A qualidade de uma cidade não se mede por um ou dois museus de sucesso que atraem visitantes estrangeiros, mas claramente pela natureza compósita e dinâmica de propostas e experiências que pode oferecer em sinal da sua real, e não artificial, vitalidade. É tão simples quanto isso.