Entrevista a Vasco Araújo.
Publicada na revista arq./a: Arquitectura e Arte, n. 21, Setembro/Outubro 2003, pp. 86-89. ISSN: 1647-077X.
A ópera, o canto e a cultura clássica são peças fundamentais no trabalho de Vasco Araújo. São referências que sugerem ao artista continuidades no tempo e pontos fixos na trama histórica que une as épocas e os homens. E são, simultaneamente, os marcos da cultura onde bem se reflecte os fios complexos que envolvem o sentir humano e as fragilidades de todo o pensamento centrado em antinomias e lógicas de sentido único. Vasco Araújo foi distinguido com o Prémio Novos Artistas – EDP Artes, em 2002.
No seu corpo de trabalho mantém uma forte ligação com a ópera. Como é que chegou a interessar-te por esse campo artístico?
A ópera surgiu de uma forma muito engraçada. Lembro-me, teria eu 10 anos, de assistir a uma ópera na televisão. Era a Aida. Para mim foi marcante, sobretudo por ser a Aida, o esplendor máximo da ópera. Fiquei completamente fascinado! E, apesar de gostar de outro tipo de música, a partir daí, fui descobrindo a ópera, não como género musical, mas como espectáculo total que é. Passei a ouvir ópera constantemente e, pelo facto de gostar tanto e de acompanhar os discos, fui construindo a voz. A minha voz foi aumentando e as notas foram surgindo cada vez mais. Entretanto, vou para as Belas Artes. Já queria ser escultor desde pequeno. E também cantor. Até tentei ir para o conservatório, mas não pude entrar porque não sabia ler música. Só mais tarde, é que encontro um professor particular de canto que me convence a ir para o conservatório. Isso coincide com a altura em que estava a acabar as Belas Artes. Acabo as Belas Artes, faço o exame de admissão e chego a entrar no Conservatório. Fiquei feliz da vida a achar que ia ser cantor e não artista. De facto, sente-se um enorme vazio quando se sai das Belas Artes, porque ninguém nos prepara para o mundo e para ser artista. E ser artista não é ter uma galeria ou fazer uma exposição num museu ou em espaços expositivos. Ser artista é um estado de espírito ou uma crença interior de o ser. Fui então para o Conservatório mas, ao fim de três meses, percebi que já era tarde e que não era isso o que queria. Tinha 24 ou 25 anos na altura, o que era complicado para o canto, que exige pelo menos 8 anos de estudos. Entretanto, apesar de ter dito que não queria ser artista, resolvi ir para a Maumaus. E penso que foi aí que tomei consciência sobre o que era ser artista e sobre o que queria fazer como artista.
Para além desse percurso, de onde vem o interesse em associar esse universo à sua actividade artística?
Foi derivado ao facto de ter tido essa crença de ser cantor e ter percebido o que era a ópera, os seus mecanismos, a sua história, o que representam as diversas vozes das personagens naquele teatro cantado, que quis trabalhar sobre a ópera. Não sobre a ópera, porque acho que essa ideia está errada. A ópera é um meio de eu chegar a outras situações. Ando à procura de personagens que digam qualquer coisa, não propriamente da ópera em si. O que mais me interessa é transmitir sentimentos e que as pessoas se questionem. E não é o questionar do tipo concordo ou não concordo, gosto ou não gosto. É um questionar interior, de um outro eu ou dos vários eus que nós temos. Ao transformar-me em Norma ou em Tosca, quero que as pessoas não fiquem standardizadas num modelo que a sociedade, que a família ou a lei lhes impõe. Apetece-me que as pessoas reflictam sobre as questões - o que é que eu sou, o que é que eu estou aqui a fazer, porque é que eu me chamo assim, porque é que eu sou artista, porque é que eu sou engenheiro, advogado...? Porque é que eu amo ou não amo, porque é que eu sou arrogante ou não ? Que personagem é esta que eu represento? Será que esta personagem é válida ou tenho uma outra personagem que pode ser melhor ou pior do que esta? De certa forma, tento construir as minhas peças como se fossem quadros vivos em que as pessoas se confrontam com aquelas situações. Acho que tentei fazer isso numa peça. No Duettino, que é uma peça complicada porque as pessoas podem não saber quem é o D. Giovanni, podem nunca ter ouvido, não reconhecer... Mas o que me interessa nessa peça não é que as pessoas entendam o texto. Se perceberem tanto melhor, mas o mais importante é a angústia daquela personagem que tem dentro dela duas ou três personagens. E interessa-me que isso saia pela voz. Para mim a voz é a coisa mais importante que nós temos, é mais importante que ver, que ouvir. A voz é o poder máximo que o ser humano tem, é aquilo que nos dá força e poder. Portanto no Duettino essa questão da voz funciona como o dar voz a todos aqueles que estão dentro de um único, que podemos ser todos nós. Nós interagimos uns com os outros, se estiver com uma pessoa durante muito tempo posso ficar com tiques dela e captar alguns traços da sua personalidade. Ela influencia-me porque gosto do seu carácter e eu também posso influenciá-la. São essas interacções que quero expressar nas artes plásticas.
Privilegia o repertório clássico. De que modo é que encontra nas grandes obras clássicas, chaves possíveis para a compreensão do mundo actual?
O tempo mudou, acelerou. Vivemos num ritmo alucinante. Com a internet, com os telemóveis, tudo é mais rápido. Esse tempo acelerado parece que modificou os tempos, mas de facto só modificou mesmo o tempo, porque o ser humano é o mesmo. O ser humano é um ser que ama, que odeia, que mata e que se reproduz. Os sentimentos são os mesmos, a forma de amar é a mesma, a forma de respeitar os outros é a mesma, a traição é a mesma. Aliás, os modelos de hoje são os clássicos. Nós estudamos durante toda a vida modelos clássicos e é muito raro conseguirmos estudar e ter uma distância perante um modelo contemporâneo. Para além disso, existe uma outra questão: quando pego num texto de uma tragédia grega, estou a pegar num modelo clássico que já foi lido por alguém no Renascimento. Acho que nós hoje, sobretudo com a entrada do novo milénio, estamos a passar por uma nova era de renascimento, ou pelo menos de humanismo. Isto de uma forma muito mais brutal. Não tanto de descoberta e de grande avanço em termos de mentalidade e de pensamento, como foi a outra, mas porventura de maior análise em relação ao nosso eu interior e ao nosso inconsciente, ao que somos e ao que andamos aqui a fazer. Acho que é uma nova forma de humanismo, uma nova forma de vivência que ainda assim tem o clássico por modelo, o do Hipolito, da Medeia...
A ópera é uma arte da convenção, mas o Vasco questiona as regras? Por exemplo, na maneira como aborda a questão da identidade sexual.
Começo a tomar mais consciência disso. Da questão de estar a pegar em modelos conservadores e nas leis que nos foram ditadas, as do bem e do mal, do que está certo e errado, para tentar mostrar o outro lado, o que está por debaixo. Realmente, o que é que nós andamos aqui a fazer, será que é só o bem e o mal, o certo ou o errado, o bonito e o feio? Ou temos outra coisa por baixo, o que é que há aqui por debaixo disto? E pego na ópera, porque ela tem esse lado. Há uma ópera com a qual nunca trabalhei, a Flauta Mágica, que é o paradigma do que eu estou a dizer. À partida parece quase infantil, uma história de miúdos, um conto de fadas... E, de repente, tem um lado esotérico fortíssimo, pelo qual é expresso o lado da mãe, o do pai e o da criança, uma rapariga que está no meio destes seres separados, balançando entre eles. Isso é uma coisa bastante actual. Depois, também é mostrado um lado positivo e um lado negativo. Mas a meio percebe-se que o lado negativo não é tão negativo quanto isso e que o lado positivo também não é assim tão positivo. Para além disso, as personagens vão-se transformando, vai-se mostrando o que é que elas estão ali a fazer, o que é que elas querem da vida e quais são os modelos em que assentam. Assim, eu ao transformar-me em mulher não é porque quero ser mulher ou por uma questão gay. Quando falo de identidade e de género, quero é perceber o que é que está por baixo. Tudo bem, nascemos homem ou mulher, mas será que somos só homem ou mulher... Será que não podemos vestir uma camisa que tem uns folhos aqui e ali, porque somos homens? É claro que hoje em dia essa questão já não se põe, a moda alterou-se. Seja como for, há depois um eu interior que nos diz sempre que não ou que sim. Portanto, essa minha transformação é um pouco para mostrar «aqui estou eu», como sou e como quero estar neste momento.
Por intermédio da auto-exposição multiplica as suas aparições, interpretando papéis e criando personagens. Entende isso como um processo de revelação?
Sim, de revelação, mas não é a minha. Isso confundiu-se, porque as pessoas sempre acharam que estava a assumir. Mas não. Eu não tenho de assumir, tenho de fazê-lo apenas para mim. Interessa-me é perceber, quando vejo uma pessoa, o que é que ela tem lá detrás. Será que ela é feliz, será que é infeliz? Por exemplo, em La Stupenda represento uma mulher frustrada ou uma mulher que perdeu o seu mundo. Essa mulher é alguém que no fim da vida ainda está à procura de qualquer coisa. Foi uma grande cantora, mas chega ao fim da vida e tem um grande vazio, um vazio próprio de alguém que só se transforma em palco. Nunca na sua própria vida. Daí não querer responder a uma pergunta e querer permanecer no seu mundo. Ela ainda está à procura, tem uma rivalidade com a irmã e quer salvá-la, quer ser um ser humano normal, com sentimentos. Mas a sociedade não a deixou, só permitiu que ela fosse outras ou outros no teatro. Fora do teatro ela tinha de ser a grande diva que não infringe a lei e se rege por modelos conservadores. Tinha de casar, de ter filhos...