«Memórias dos Actos», Pedro Valdez Cardoso: Livro de Actos, Centro Cultural Emmerico Nunes/Módulo, 2006.
Desde o início do seu percurso artístico, Pedro Valdez Cardoso tem trabalhado, de vários ângulos, sobre a questão da identidade, sendo os processos de uniformização civilizacional e cultural aspectos constantes no seu trabalho. Tratou diversos temas, por vezes tirando partido do contexto e das circunstâncias em que trabalhou, sem que isso o desviasse do sentido de pesquisa que norteia a concepção do seu trabalho.
A instalação que concebeu para as alcáçovas do Castelo de Sines segue uma mesma linha de orientação no sentido em que estabelece uma relação com o lugar expositivo, tendo em atenção a especificidade do local e remetendo-nos para a definição de um conteúdo temático que privilegia a dimensão histórica e cultural do sítio, carregado de história e de memórias: Vasco da Gama, natural de Sines, habitou aquele espaço expositivo, e nesse sentido são inevitáveis as múltiplas referências aos Descobrimentos Portugueses presentes nesta obra.
Segundo esta orientação associativa que procura a integração no espaço, o tema e objecto desta instalação de Pedro Valdez têm em atenção a contextualização histórica. Ele procurou integrar esses conhecimentos no seu trabalho, ainda que o seu propósito não seja estabelecer um exercício de reconstituição ou ensaiar uma intervenção de valor ilustrativo ao nível das associações históricas estabelecidas.
Sob o título Livro de Actos, Valdez apresenta uma instalação formada por um conjunto de peças escultóricas construídas em forma de estandartes, que expõem combinações ecléticas de objectos de diversa natureza: uma pá, um balde, remos, ossos, velas, latas de cerveja, caveiras, esfregonas, pás, armas, restos de velas, baús, tesouros…
Os estandartes – sempre destinados a simbolizar a identidade, a autoridade, a honra, a importância, o valor das estruturas colectivas e sociais, funcionam aqui como representações de poder e domínio; e é por intermédio de uma combinação de objectos, desde o mais vulgar ou inusitado, que se revelam igualmente sinais de riqueza e de acumulação, e a evocação das trocas comerciais, das relações de força, de supremacia e do poder militar que desenharam o mundo dos séculos XV e XVI – nada de novo, portanto. Mas por outro lado, para além de oferecer configurações estranhas e inesperadas de objectos que desconcertam o espectador, esta apresentação coloca-nos simultaneamente perante um jogo estabelecido entre a diversidade da natureza dos objectos e um efeito de padronização que decorre de uma operação de revestimento da sua superfície.
Como é característico das peças de Pedro Valdez, neste trabalho nota-se a insistência nesse processo de revestimento dos objectos, com o emprego de um mesmo material. Neste caso, fazendo uso de folha de alumínio e fita de prata isolante, ele obtém um sentido de unidade que, sem prejudicar a definição e o reconhecimento das formas de cada objecto utilizado, cria um efeito de distanciamento, de dissimulação, que produz a abstractização da sua aparência, de tal maneira que outros factores ganham importância. Por exemplo, o carácter simbólico dessa cobertura, a produção de associações metafóricas e a importância do valor da imagem, mais as qualidades reflectoras destes materiais, potenciam quer o sentido bélico da sua aparência quer os sinais de riqueza ornamental que produzem.
Mas sobretudo, por meio deste procedimento e através da homogeneidade de superfície, da uniformização do conjunto, Valdez sublinha a ideia que lhe interessa explorar: os mecanismos de uniformização, os processos de padronização, as coordenadas normalizadoras que, em qualquer época, evidencia a construção cultural, conforme a ideologia dominante.
Nesse sentido este é um trabalho definidor da obra deste artista, e que surge como um prolongamento, desenvolvimento e análise de uma questão já aflorada em obras como Areias Movediças, I didn't choose never to forget, Embuste, Le Monde Diplomatique, ou Mise en Scène. Da imagem que nos apresenta, e para além da reutilização de vários itens, que formam um fio condutor na sua variada produção, destaca-se ainda o investimento numa forte componente cenográfica: acréscimo de sublinhado para uma percepção da vida dos objectos, que nos lembra o seu duplo poder de signo e testemunho da passagem do tempo e da História...