Texto «Nós, War & Love», publicado no catálogo da exposição de Alice Geirinhas, War & Love, Oeiras, Galeria 24b, 2005.
Hoje as imagens de guerra chegam-nos diariamente num fluxo incessante de difusão informativa, que associamos à circulação massiva de notícias nos meios de comunicação. A nossa relação de observadores dessas imagens não é recente, na memória colectiva existe um extenso arquivo de imagens onde permanecem as fotografias mais conhecidas de guerras. Possivelmente, aquela que é considerada a mais famosa fotografia tirada em experiência de conflito, da autoria de Robert Capa captada durante a Guerra Civil de Espanha, com o soldado republicano a ser atingido, e que viria a ser publicada na revista Life, em 1937. E se recuarmos ainda mais no tempo podemos referir o trabalho pioneiro do fotógrafo Roger Fenton, que teve por missão fotografar a Guerra da Crimeia em 1855. Desde a invenção da máquina fotográfica em 1839, a fotografia transformou-se na grande testemunha da realidade, e a existência destas imagens demonstram como a fotografia sempre teve uma relação estabelecida com o registo do sofrimento. Com os avanços técnicos alcançados, e o desenvolvimento do aparelho portátil, a fotografia mostraria a sua grande capacidade de registar com detalhe, nitidez e imediatez acontecimentos em cenários de guerra. O seu registo pareceria cada vez mais objectivo e mais transparente, dando a garantia de proximidade à realidade representada. Até hoje, quando pelo desenvolvimento das comunicações via satélite chegámos à perversidade de poder seguir em directo sucessivas guerras através do ecrã da sala de estar.
Quando falamos de imagens associadas ao drama da guerra não podemos sublinhar apenas a fotografia, temos fazer referência à história da pintura, território onde a sua representação tem uma longa tradição. Cabe-nos citar a série de gravuras Os Desastres da Guerra (1810-1820) de Goya, em que o pintor representa a violência e a barbárie dos soldados napoleónicos em guerra, mostrando como estes travaram o combate para dominar a revolta espanhola contra a dominação francesa. Entre nós, na história da pintura portuguesa, encontramos exemplos mais próximos e recentes, da segunda metade do século XX. Nomeadamente obras que integraram o movimento neo-realista, cujo principal ideal era «exprimir a realidade viva e humana de uma época». Caso de obras como Apertado pela Fome (1945) de Marcelino Vespeira, em que se baseou num poema da resistência de Paul Éluard, e em Eco do Pranto (1937) de Siqueiros, artista mexicano que havia participado na Guerra Civil de Espanha.
Na exposição War & Love, Alice Geirinhas também nos apresenta imagens de vítimas da guerra. A série é composta de seis telas, cinco delas realizadas a partir de fotografias de guerra que se fazem acompanhar de um pequeno resumo que contextualiza os acontecimentos numa história interminável de conflitos bélicos: a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Civil do Líbano e a Guerra do Iraque.
Quais são as emoções causadas por estas imagens e pela apresentação e divulgação de cenas que testemunham o sofrimento dos outros? Quais os efeitos causados pelas imagens difundidas? As imagens desta natureza aproximam ou distanciam o observador da realidade? A sua banalização incita à violência ou gera apatia?
Estas questões e ideias surgem evocadas nesta exposição, assim como na obra referenciada por Alice Geirinhas neste seu novo trabalho: o ensaio Olhando o sofrimento dos outros (2003) de Susan Sontag. Neste texto a escritora norte-americana debruça-se sobre o poder da imagem, a sua função e utilização; e convocando realidades, pontos de vista e autores como Charles Baudelaire, escritor que por volta de 1860, escreve nas páginas do seu diário:
É impossível passar os olhos por qualquer jornal, de qualquer dia, mês ou ano, sem deparar em cada linha com os mais tremendos traços de perversidade humana…Todos os jornais, da primeira à última linha, não passam de um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, devassidões, torturas, os maus actos de príncipes, de nações, de indivíduos; uma orgia de atrocidade universal. E é com tal odioso aperitivo que o homem civilizado acompanha diariamente o seu repasto matinal.
A reflexão poderia abrir-se em torno de teorias que surgem analisando questões como a da utilidade e importância destas imagens na nossa sociedade, o seu papel na sensibilização e no desenvolvimento de uma consciência crítica que desencadeasse respostas activas aos conflitos. E do mesmo modo sobre questões como a da necessidade de estabelecer uma possível economia ou ecologia das imagens, num regime que permitisse controlar alguma falta de moderação na sua produção e circulação massivas. Sobretudo se pensarmos que de entre os efeitos desse excesso de consumo está a possível banalização e saturação, ou o enfraquecimento do choque que essas imagens nos podem causar. O que assim nos levaria a falar de passividade perante o que outrora nos fazia estremecer, ou de uma apatia crescente ao nível da sensibilidade, até de indiferença, ou mesmo de uma fuga pelo simples facto de que essas imagens de violência nos fazem sentir mal.
Quando olhamos para as obras de Alice Geirinhas, o primeiro dado a reter é a falta de realismo do seu registo; a artista serve-se da fotografia, de reproduções de imagens de guerra para realizar um trabalho que se apresenta como resultado da apropriação e deslocação destas imagens. Alice Geirinhas não parte da tela em branco, cita imagens, trabalha sobre aquelas que já existem. Assim ao actuar no espaço da apropriação, a artista aproxima-se do espectador, e situa-se ao nosso lado enquanto observadora dos originais. Encurta a distância tradicional entre o artista e o público, mas também faz a mediação. O anonimato é relativo, já que a sua presença reconhece-se pela intervenção plástica que realiza. No processo de trabalho a artista parte das fotografias e por intermédio da sua prática pictórica vai camuflando a imagem original, torna essas imagens genéricas, distancia-se delas como se a sua intenção não fosse sublinhar o choque e o estremecimento que alguma vez causaram. A sua memória é evocada, mas a aparência é discreta, de modo a não reabilitar as emoções a que estão associadas. O desejo da artista é criar relações de sentido a partir dessas imagens recontextualizadas, o que certamente exige o conhecimento da palavra, do contexto para o qual nos remetem. A legenda faz alusão à sua história e ajuda-nos a situá-las. O propósito da sua intervenção artística é suscitar a reflexão.
Na parede da galeria, acompanhando a exposição das telas, revelam-se fragmentos extraídos da História das Mil e Uma Noites, que contam a história de Xerazade, uma sobrevivente e heroína, que através da palavra e da sedução, impediu a morte de outras mulheres e a sua própria morte. Como relacionar esta história com estas imagens de guerra?
Que leitura nos é suscitada quando vemos lado a lado, telas como Medo, Mãe e Tereska, que evocam a memória colectiva, mas também Alice, Camila e Clara, o auto-retrato da artista com as filhas deitadas no sofá, que desde logo associamos a uma dimensão mais privada e íntima deste pequeno diário feito de imagens. Um diário que nos leva ao encontro da guerra e do amor, assim como à evocação da tranquilidade e da serenidade, e sobretudo a um ponto de chegada que nos faz pensar. E nós, podemos fazer alguma coisa?