Texto «Lado a Lado», publicado no catálogo da exposição The First Step/O Primeiro Passo, MACE – Movimento para a Arte Contemporânea em Évora, 2001, pp. 13-16
Curadoria: Pedro Cabral Santo e Pedro Portugal
Local: Armazéns da Palmeira, Évora
Datas: 27.10 – 16.12.2001
«Porque esta vanguarda coincide e acelera o fim da arte-monumento. O fim de uma arte cujo símbolo maior poderia ser: um museu antiquado a rebentar de prestígio (o Louvre)(...)» – Ernesto de Sousa[1]
Porque uma das principais funções dos museus é a de preservar e conservar testemunhos materiais do passado, não raramente lhe foram apontados contornos conservadores que os oporiam às vanguardas, símbolo por excelência dos novos tempos. São frequentes na prática artística momentos em que as novas tendências tecem críticas ao sistema artístico por não encontrarem nele o reconhecimento que permitiria a configuração de espaços adequados a lógicas de actuação de carácter experimental. Segundo esta perspectiva poderemos pensar que o descrédito a que Ernesto de Sousa votava os museus não seria mais do que a manifestação de uma atitude anti-museu bem recorrente ao longo de todo o século XX. Não sendo aqui o lugar para traçar as relações que se foram estabelecendo entre a prática artística e os museus, mesmo assim se referenciam breves afirmações proferidas no âmbito do Colóquio Apom 76, num contexto que se pautou pela reflexão em torno do Panorama Museológico Português: carências e potencialidades. Questionou-se primeiramente «Para quê um museu que permanece uma instituição estática e elitista num mundo em constante transformação?» - para mais tarde se concluir - «Impõe-se pois que os Museus se tornem, em certa forma, uma Pro-Vocação salutar no sistema sociedade-homem-cultura»[2]. E viria a ser esse o efeito das tendências adversas à cultura museológica.
Não por casualidade o título da primeira exposição do Movimento para a Arte Contemporânea em Évora O Primeiro Passo vem evocar a ideia de mobilidade, de iniciativa e de acção, e nela, entre aqueles que se juntaram para dar o primeiro de muitos passos, estava David Medalla. Artista de origem filipina, mas residente há muito tempo em Londres, desde a década de 60, Medalla vem confirmando a dinâmica experimental e a lógica cosmopolita que preside à génese do seu trabalho. Algo que o leva a viajar pelo mundo e de um modo muito informal a procurar estabelecer relações de trabalho com colegas e amigos com quem se vai cruzando ao longo do percurso. Foi segundo esses mesmos princípios de relacionamento que o artista endereçou pessoalmente um convite à população de Évora, incitando-a a participar na performance que decorreria nos Armazéns da Palmeira. A acção intitulou-se Hommage to Évora e foi com a intervenção do público que se procederia à formação de uma ponte humana. Essa acção decorreu quase em simultâneo com a de Adam Nankervis, artista australiano que tem vindo a colaborar com David Medalla desde a fundação do Mondrian Fan Club, em 1993. Num cenário preenchido por imagens de múltiplos fragmentos do corpo humano, dispostas no chão, Nankervis e Arturo Fuentes trataram performativamente, em Boquets for a Dead End Street, o imaginário associado ao acto da morte e, de forma intimista, a complexidade da condição humana. Caso semelhante da naturalidade com que retrata temas tabu da nossa cultura é Photos – branding axel – A (Arts Council of England), trabalho fotográfico sequencial em que expõe uma perspectiva desassombrada pela intimidade.
Fritz Stolberg que também desenvolveu trabalhos em parceria com Medalla, nomeadamente A Trip to Margate (2000) um projecto sonoro no website da Peep Radio [www.peep.dk], invoca em The Eiland – Archive (2001) a ideia de arquivo comunitário. Seguindo um princípio de intervenção participada, os espectadores são convidados a expôr pensamentos e observações, e a formar uma espécie de mapa. Confrontando o espectador ao vazio da superfície, deixando à sua disposição canetas de feltro, instando-o a desafiar o nada pela fixação de memórias, é provável que durante o período da exposição esta peça exerça com proveito o fascínio de um atlas de autoria colectiva.
Os trabalhos de Rosa Almeida constituem também uma rede descontínua onde se combinam materiais heterogéneos, entre eles recortes, fotografias e elementos pictóricos. Manifesto é também o uso pessoal que a autora faz do acto da escrita. Tal como acontece em Improvisation on art and language (2001), no espaço das suas obras dispõem-se diferentes frases, interjeições e afimações que, sem nunca obedecer a um arranjo direccional unívoco ou a enquadramentos formais, relevam na sua própria expressão impulsiva do sentido espontâneo da linguagem diária. Longe da lógica retórica e do desejo compulsivo de abstractização linguística e geometrização plástica que norteia alguma da poesia visual, é pelo carácter processual, fragmentário e orgânico dos seus itinerários que a autora estabelece uma sistemática articulação com a geografia do vivido.
Impregnadas de uma atmosfera intimista, as fotografias de Marta Wengorovius, que compõem a sequência Passeio (2001) produzem uma impressão de enigma. É certo que em algumas das suas imagens ela capta aspectos da natureza, regista espaços interiores, auto-retrata-se, e é mesmo possível seguir entre as várias polaroids algumas linhas de continuidade; porém no conjunto da série o que ressalta é uma renúncia ao dispositivo linear que exibe uma acção com princípio, meio e fim. Ausente está também a prática de interferência que pauta as manifestações da Land Art na paisagem, podendo dizer-se que na sua obra assume o desejo de se envolver com o mundo visível sem deixar rastos. O resultado é o estabelecimento de um circuito de características não referenciais e amplamente alegóricas.
Foi através de polaroids que Eva Mota explorou pela primeira vez o domínio da auto-representação, nelas definindo os traços gerais da sua obra. Fez-se representar depois por meio da fotografia e do vídeo, encenou ficções em diferentes contextos, e em cada trabalho sublinhou as qualidades de expressão corporal e performativa bem como a direcção temática do seu trabalho – o tratamento da questão da identidade. Na peça S/Título (2001), que agora apresenta, a autora mantém essa linha de pesquisa. Refira-se contudo algumas das modificações exercidas no domínio da sua intervenção. À exploração de ambientes bem circunscritos e intervenções mais imediatistas sucede uma maior contenção e frontalidade no registo, e do mesmo modo se evidencia um deslocamento da sua atenção estética. Eva Mota passa a cuidar em todos os pormenores a eficácia gráfica e plástica da sua imagem e é colocando o espectador perante uma composição depurada e uma atmosfera sombria que potencia a aura misteriosa da sua constante presença.
Foi também num universo de penumbra que Pedro Cabral Santo situou S/Título (dedicated to little Vasco who will born soon, 2001), peça onde explora o domínio da escrita mediante o uso de uma palavra – Empty – traçada de forma caligráfica na parede. E ainda que em termos plásticos se assemelhe a um néon, ela é na verdade construída por um segmento de mangueira plástica. E poderíamos dizer que nos encontramos apenas num primeiro nível de ambiguidade, já que para além da sugerida pela aparência material da peça, se nos detivermos na análise do plano representacional logo nos deparamos com uma outra não-coincidência, aquela que se deve à relação contraditória estabelecida entre o sentido da palavra Empty/Vazio – e o que de facto se vê, a corporalidade da solução líquida. Esta, formada por vodka com laranja e «dry-glo acrilic», vai preenchendo e circulando ininterruptamente ao longo do estreito canal por acção de um compressor de ar e de uma bomba de drenagem. É uma lógica explorada por Cabral Santo em trabalhos anteriores, e que em S/Título (dedicated...) continua a dar conta da dimensão inventiva em que baseia a sua obra.
Do mesmo modo inventar e experimentar são atitudes que se associam ao trabalho de Susana Guardado, artista que vem desenvolvendo um trabalho de natureza construtiva e que para figurar em The First Step criou uma escultura que consiste num protótipo de máquina muito similar a um equipamento hoteleiro. A peça, intitulada Nata Artística (2001), poderia mesmo figurar numa qualquer feira industrial, já que pouco ou nada a distingue das vulgares bancadas de inox. Todavia é nas instruções que a acompanham que ficamos a saber tratar-se de um instrumento concebido em prol da democratização do trabalho artístico. Colocado à inteira disposição do espectador, a bancada é o meio que lhe permitirá realizar paisagens de nata, ou seja, desenhar montanhas e rios instantâneos, edificar estruturas voláteis, e com satisfação acrescida, talvez consumi-las, para logo pedir novas recargas.
Em Variacion de...esto no. Es exactamente asi...(2001) Arturo Fuentes construiu uma escultura/instalação com objectos mecânicos aparentemente irreais. São cinco os alvos que se deslocam continuamente ao longo do suporte que os sustenta à parede, e que na sua aparência pobre e inútil se oferecem ao jogo do absurdo. Trata-se de uma obra representativa dos trabalhos que o autor vem desenvolvendo e que, nunca esgotando-se num exercício de gramática visual, encerram em apelo lúdico o objectivo de transcender a visão funcional da alta tecnologia e questionar a finalidade das opções tecnológicas na sociedade contemporânea. Evidente é também a referência implícita ao legado das vanguardas, de Picabia e de Duchamp, artistas pioneiros que ao fazerem livre uso da apropriação e da valorização estética do objecto mecânico superaram a dicotomia arte-máquina.
Nas suas peças João Simões cria experiências sugestivas através do uso não convencional dos meios tecnológicos. Em PAL (2001) produz em vídeo um efeito óptico a partir do «feedback» gerado entre aquele sistema e o NTSC, obtendo uma imagem que é fruto do princípio da indeterminação e da aleatoridade. Similar e equivalente no seu sentido experimental é MD loop feedback (2001), obra na qual, mediante o circuito fechado estabelecido pela ligação de um mesmo cabo à entrada do microfone e à saída de áudio de um «Mini Disc», Simões capta o registo sonoro assim produzido. Os resultados são desconcertantes, na medida em que subvertem a normal intencionalidade do domínio técnico, e indiciam a capacidade transformadora das práticas artísticas, que à margem do que se considera ser a competência dos suportes tecnológicos, tendem a explorar criativamente dispositivos assentes em descontinuidades e incompatibilidades comunicativas.
Em SpaceJunk de Miguel Soares, peça apresentada originalmente no âmbito do projecto Odisseia no Tempo da Galeria Luís Serpa (Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural, 2001), a cultura e os recursos tecnológicos, mas também a indústria e a exploração espacial, são objecto de observação e tema para simular com auxílio da animação tridimensional o anel de lixo que circula em redor do planeta Terra. Para recriar digitalmente o fenómeno o artista socorreu-se ainda da Internet, seleccionando e transportando diferentes peças em miniatura a partir desse grande arquivo. Entre estas contam-se múltiplos fragmentos metálicos e satélites de comunicação obsoletos, figuras que sabemos fazer parte dessa qualidade de detritos, e outras que só muito improvavelmente poderão integrar esse movimento orbital, caso do grande urso de pelúcia que acaba por conferir ao conjunto uma inusitada familiaridade. Igualmente suspeita é a visão sintética com que retrata a esfera dos detritos, aquela que alicerçada numa imagem ilusória acaba por remeter para um plano de consciência desligado das características físicas comummente associadas ao mundo caótico, imperfeito e ferrugento da matéria residual.
Inês Carolina apresenta Suave, suave fatalmente para quem elege o sol, o mar e o céu (remix) 2001, obra que foi criada a partir da peça realizada há três anos para a colectiva O Império Contra Ataca (ZDB/Rua da Barroca). É um trabalho vídeo em que a autora retrata os valores da passividade e da harmonia existencial com a ordem universal por meio da alusão a um ritual de meditação. Todavia mais do que celebrar e incitar o espectador a encontrar o equilíbrio junto a uma mesma filosofia e prática de vida, perante este horizonte referencial a obra induz a um olhar crítico em relação à imobilidade existencial, assim como questiona a transposição para o universo da cultura oriental, de um modo comportamental que só aparentemente traduz uma característica ou mais latamente uma especificidade identitária.
Mais caótico é o ambiente que Manuel João Vieira criou no atelier que ocupa a sala mais interior dos Armazéns da Palmeira. A parede está repleta de inscrições, e no lugar encontram-se um frigorífico, um sofá-cama preparado para as noites de inspiração, e uma mesa, ocupada por catálogos, livros de arte e por um letreiro cuja legenda – O Artista Desenha – logo indicia a prática do retrato a partir do modelo vivo. Semelhante carácter provocatório e irónico pontua a série de instalações e pinturas que compõem o lugar. As imagens eróticas e de caveiras sobrepõem-se em algumas das suas peças, e nas composições figurativas expõem-se ao mais exacerbado estilo “kitsch”, pela imitação de modelos históricos, de um Géricault ou de um Courbet. De resto é também a estética do mau gosto e do registo naïf que aqui servem o tratamento de temas da actualidade, como acontece na peça onde a representação do Templo de Diana serve de fundo cenográfico à bandeira americana e ao retrato de uma personagem célebre - Bin Laden – cujo rosto surge traçado numa espécie de medalhão que repousa junto ao chão.
Para lá do interesse de não se ter circunscrito esta primeira mostra ao quadro de presenças nacionais, deve-se ainda destacar a apresentação de diferentes manifestações artísticas. Ao reunir vias de criação artística diversas, da performance à fotografia, ao vídeo e à instalação, The First Step assinala, em proveito da experiência da diversidade, os vários interesses temáticos e suas ramificações congregados no paradigma da criação mais actual. Pelo que é também a noção figurada do Lado a Lado a exprimir a intenção e perspectiva que norteou este Primeiro Passo.
Footnotes
- ^ Ernesto de Sousa, «Os 100 Dias da 5ª Documenta», in Isabel Alves, José Miranda Justo (Org.), Ernesto de Sousa. Ser Moderno... Em Portugal. Lisboa: Assírio e Alvim, 1998, p. 64 [Original publicado in Lorenti`s, nº 11 (Fevereiro de 1973)].
- ^ Maria Teresa Gomes Ferreira, «Museus para Quem?» in Actas do Colóquio APOM 76: Panorama Museológico Português: carências e potencialidades. Porto: APOM, 1979, p. 47.