Texto do catálogo da exposição de Pedro Amaral «BAD BOY PAINTING COMICS», Galeria Quadrado Azul, Porto, 2007.
A pintura é a forma de intervenção de Pedro Amaral. Nas suas poderosas montagens, tão apelativas como politicamente comprometidas, o artista segue a tradição da prática de apropriação de materiais visuais, compondo fragmentos seleccionados a partir de variadas fontes. Os seus trabalhos combinam cenas figurativas retiradas de contextos como a banda desenhada, a publicidade, livros, revistas e enciclopédias ilustradas.
Com frequência, coloca lado-a-lado elementos de regiões e culturas diferentes, desde a americana, chinesa, indiana, passando pela «russo-soviética», até à japonesa. É o caso da série de três telas Indoor/Outdoor (2001/2005) em que se reproduzem, por exemplo, cartazes de filmes da indústria americana, como James Bond, e de películas comerciais indianas Made in Bollywood, bem como imagens de danças havaianas ilustradas nas máquinas de flippers, e vinhetas da banda desenhada japonesa Manga, entre outros. Também, no tríptico composto por Wrestling Palace; Sushi Bar/Karaoke Device, Love Hotel, alude à sociedade japonesa e aos estereótipos que formámos dessa cultura. Nela, Pedro Amaral retrata a noite na grande metrópole que é Tóquio, apresentando formas de entretenimento, conjugando hábitos tradicionais (como as geishas e o popular combate de luta Sumo) e modernos.
Para além de os fragmentos utilizados preencherem a totalidade da tela, em termos espaciais, eles também atravessam diferentes períodos da história. Assim, várias parcelas da civilização remetem-nos para a questão da passagem do tempo, como se pode ver em trabalhos como Beyond Planet Earth (2006). Aqui, o espectador é conduzido ao longo de uma série de perspectivas sobre o percurso da humanidade, incluindo a aventura espacial, actividades produtivas reproduzindo um esquimó a pescar, um índio a caçar e cenas do quotidiano agrícola africano, americano e canadiano.
Embora estas fontes icónicas tenham frequentemente linguagens figurativas diferentes — o desenho pode ser quer realista quer estilizado, quer monocromático quer policromático —, Pedro Amaral associa-as, com aparente facilidade, de modo a formar uma homogénea construção de significados. A intenção irónica e crítica, constante nos seus trabalhos, consegue-se precisamente através do modo como realiza a montagem dos múltiplos fragmentos da iconografia da sociedade moderna e antiga.
Amaral tanto dispõe as imagens como se de vinhetas de banda desenhada se tratassem como justapõe ou sobrepõe os desenhos nas suas composições para criar uma visão panorâmica sobre determinados temas. Na realidade, o seu percurso iniciou-se com a ilustração nos anos 80, o que veio a marcar o carácter crítico inerente ao conjunto da sua obra. E para além dos autores da ilustração que o influenciaram (Jack Kirby, Chester Gould, Jije, Hergé e ainda Robert Crumb e Charles Burns), interessou-se, desde cedo, pelos artistas da Pop Art.
Reconhecida pelo poder das imagens e pelo seu carácter sedutor, a arte Pop é uma base de trabalho para Pedro Amaral que nela procura a ambivalência do seu discurso. O artista combina o prazer visual, a crítica e subversão presentes nesta estética, sem descurar a difusão demasiado comercial e totalizadora também características da Pop. Explora, assim, as contradições do movimento, ao acentuar a tensão entre o cariz apelativo, sedutor e comercial da sua imagem e a provocação implícita no tratamento de alguns temas, como a relação entre a cultura e o comércio. À semelhança do que alguns artistas Pop fizeram, Pedro Amaral apropria-se de imagens, ilustrações, elementos gráficos já existentes para formar novas leituras. Em alguns das suas telas, com a ajuda de retroprojectores, redesenha motivos centrais ou simplesmente detalhes da produção de autores como Roy Lichtenstein, Richard Hamilton, Erró e Robert Indiana. Exemplo desta rede de apropriações é a sua obra Templo de Song Lai que, na parte superior, apresenta uma imagem de um trabalho que o próprio Erró já tinha «adoptado».
Com o tema comum da utopia, Pedro Amaral faz referência aos anos 60 nos trabalhos que apresenta na Galeria Quadrado Azul, estabelecendo a ligação entre peças anteriormente realizadas e uma nova série de trabalhos. Crucial nestes trabalhos é que não contam a história dos anos 60, mas criam uma plataforma de discussão sobre um panorama histórico que também reflecte a situação política global contemporânea.
Mais do que em qualquer outro período da história, os anos 60 foram tempos de optimismo, de promessas, de expansão económica, de ideais revolucionários, de heróis, de líderes reformadores, de mitos musicais e, simultaneamente, de esperanças falhadas e muitos conflitos: a guerra americana contra o Vietname e os conflitos raciais nos Estados Unidos, as manifestações estudantis acompanhadas pelos movimentos pacifistas e a alteração de costumes, com a introdução de misticismo e drogas, são alguns dos marcos dessa década que o artista reconstitui.
Aliás, estes acontecimentos são convocados e o artista produz uma crítica a vários níveis, nomeadamente, ao contexto político, social, religioso, informativo, científico e tecnológico, no conjunto das obras apresentadas.
Em Beatles (2007), Pedro Amaral revela o impacto do efeito kitsch e a expressão directa da subversão. Trata-se de uma imagem que tem como motivo central a apropriação da iconografia de Ganesh, o deus da cabeça de elefante que, de acordo com a mitologia hindu, simboliza o conhecimento, a sabedoria e a esperança, abrindo caminhos e destruindo obstáculos. Esta imagem que ganha destaque na tela devido à sua dimensão monumental, é ladeada por múltiplos retratos realizados com a técnica stencil, tanto de pessoas anónimas como do grande mito do mundo da música (os Beatles) e ícones da vida política, como Fidel Castro. Em Andy Warhol (2007) a figura destacada é Mao, o implantador da revolução cultural na China. O «grande timoneiro» — que nesta tela é amplamente reproduzido, seguindo-se o princípio da repetição do artista pop norte-americano — surge estilizado com a expressão do Smile. Por sua vez, em Whaam (2007), com base em ilustrações que representam cenas do quotidiano feminino vietnamita, Pedro Amaral cria uma ambiente bucólico, subtilmente cortado com a introdução da figura maquiavélica de Kentucky Chicken, de uma pequena silhueta branca de um helicóptero e ainda com a palavra «Whamm», a qual dá título a esta e a uma conhecida tela de Lichtenstein, referente a um combate áereo retirado de uma banda desenhada. Implícita nesta ambivalência de planos está uma crítica ao belicismo que acompanhou a história do Vietname.
O tratamento do passado colonial português ganha relevo na obra Takka Takka (2007), nomeada a partir da obra homónima de Roy Lichtenstein de 1962 que, ironicamente, tece um elogio ao esforço dos soldados. Nela, mostra ilustrações da guerra colonial, retratos de personalidades que marcaram esse período, justapostas com a silhueta do santuário de Fátima e com detalhes que espelham acidamente o Portugal contemporâneo e as suas relações com o continente africano. É o caso do logótipo do Euromilhões Lisboa-Dakar 2007.
Ainda em 2007, Pedro Amaral realizou Man on the Moon, uma tela constituída também por vários fragmentos. Aqui, o pé humano é associado a determinados acontecimentos e realidades, entre outros, a chegada do homem à lua, a passagem terrestre na fronteira dos Estados Unidos com o México e a pegada ecológica — que nos oferece uma estimativa da quantidade de recursos necessária para produzir os bens e serviços que consumimos e absorver os resíduos que produzimos. Numa alusão às questões de sustentabilidade e impacte humano no planeta, aos recursos e níveis de consumo e às condições de vida na Terra, Pedro Amaral alerta-nos para os índices de desigualdade social existentes, actualmente, entre os diferentes países, bem como, para fenómenos como a migração e a globalização.
Já na tela 00.00 (2007) existem apenas dois elementos realçados com cores brilhantes: uma mangueira de bomba de gasolina, que se assemelha a um revólver, em grandes dimensões, acompanhada pela indicação de abastecimento de combustível, com valores a zero. A intenção do artista neste trabalho é a de exibir o fascínio vibrante da expansão económica, questionando a especulação, o comércio e a corrida ao petróleo, geradora de conflitos mundiais. Em suma, a obra de Pedro Amaral baseia-se na apropriação contra-cultural de imagens onde o carácter comercial da sociedade de consumo é colocado em causa. Portanto, pinturas mostradas com uma intenção crítica, não podem implicar uma recepção ingénua.
É precisamente a atmosfera densa e ricamente alusiva ao ambiente visual da civilização contemporânea — caracterizado pela acumulação de dados, a sobrecarga de informação, o poder dos anúncios publicitários e o impacto das imagens — que molda a expressão interventiva de Pedro Amaral, o que o torna um dos pintores mais interessantes do actual panorama artístico português.