Texto «A Regra do Jogo», publicado no âmbito da exposição de João Fonte Santa, Destruição De Luxe, Galeria António Henriques, Viseu, 2003.
Inserido num cenário pautado pela acumulação e vertiginosa profusão de imagens que ilustram a história da Humanidade e do seu desenvolvimento civilizacional, João Fonte Santa recupera o poder evocador da linguagem visual e articula o domínio da representação com uma experiência interpretativa que põe a descoberto questões inerentes à ordem e funcionamento do mundo: a estratégia militar, o exercício e a psicologia do poder.
I. A sua tribo começa com uma unidade de colonos e não tem conhecimento da área circundante. À medida que vai encontrando novas cidades e explorando as redondezas, pode encontrar bárbaros hostis, vilas e outras culturas competindo pelo mesmo. Uma vez que encontre uma outra cultura, pode adoptar uma política de coexistência assinando com essa cultura um tratado permanente de paz; pode até formar uma aliança militar. Mas para aqueles que gostam de conquistar será com certeza uma grande satisfação enviar 50 unidades militares diferentes e esmagar os seus inimigos[1].
Fonte Santa trabalha a partir de um extenso fundo documental de imagens e referências de variada proveniência, onde se incluem revistas ilustradas dos anos 50, esquemas retirados de enciclopédias e matérias de reportagem que reflectem o mediatismo dos temas em análise. E é essencialmente a partir das práticas de associação e correspondência a que a sua obra dá lugar, que somos apresentados a uma emblemática visão do mundo, assente na multiplicidade de pontos de vista.
A ideia de jogo é por isso mesmo a sua imagem de força. Um jogo que tem pouco de aleatório e fortuito, evidenciando-se antes como operação simbólica capaz de pontuar uma oscilação, por sinal bem característica do espírito do tempo, entre os domínios da lei e do caos, da ficção e da não-ficção, e abalar a ordem sob a qual organizamos as nossas representações de mundo. Na verdade as suas telas podem funcionar como um puzzle formado por armadilhas prontas a desestabilizar o valor de verdade e a pôr em curso um exercício de diferenças e semelhanças em relação às presumíveis evidências do material original. É uma via em que a diacronia e a verosimilhança histórica tanto podem dar lugar à combinação de acontecimentos actuais e de evocações históricas como a uma reinvenção liberta dos constrangimentos do «sentido de realidade».
II. Pode escolher entre seis tipos de governo diferentes: Despotismo, Monarquia, Fundamentalismo, República, Comunismo e Democracia. Cada um destes tipos de governo tem as suas próprias vantagens e desvantagens. Indicam como irá funcionar o seu império e exercerão uma profunda influência sobre ele.
E porque o jogo é jogo e nele sempre se podem manifestar alternativas possíveis e realidades prováveis e improváveis, é também a fantasia que nos permite ir ao encontro da constituição simulada e livre de mundos paralelos. Ou seja, ir ao encontro da formulação imaginária de universos traçados pela proximidade de contextos anacrónicos, passados, próximos ou futuros, passíveis de sugerir filiações peculiares e inquietantes e suscitar choques culturais perversos. Revelação bem evidente em Ghostrider, na imagem de conjunto retratando a ordem hierárquica do sistema social, militar e político do regime nazi, a qual estabelece uma combinação equívoca e indesejável entre personagens, ou uma espécie de jogo irónico imposto pela ausência do ditador e pela presença da figura tutelar do seu contra-sistema – o salvador.
III. No entanto, o aspecto militar não é o único neste jogo. Vai precisar de concentrar-se no comércio, no desenvolvimento científico, e tornar o seu povo feliz de maneira a evitar a desordem cívica.
É pois a partir deste exercício de implicações ficcionais e lúdicas semelhantes a alguns enredos fílmicos e aos jogos de estratégia e conquista militar onde simulamos os destinos da humanidade, que João Fonte Santa coloca em cena o reconhecimento do grande jogo civilizacional, ecrã e palco onde se expõem as operações e os princípios que regulam o curso da sociedade humana e a realidade social, cultural e política.
Em peças como A morte vem de cima e No, I don’t do drugs encontramos imagens demonstrativas da força da máquina militar e do luxo tecnológico da indústria de guerra através da panóplia de modelos aéreos expostos, em alguns casos sobre fundos citados a partir da obra plástica de Bridget Riley. A lógica dessa relação acaba por espelhar simultaneamente o carácter alienante da força propulsora da ciência-economia associada às situações bélicas, como o paradoxo que assiste ao ciclo de produção e consumo da chamada «velocidade da guerra», programa cumprido por uma destruição forçada, invariavelmente contínua e periódica, do mundo e do armamento.
E como não há jogo sem dificuldades nem desafios, aqui não podem estar ausentes os meios implacáveis e sedutores que concorrem ao serviço de uma aliança sempre tão desejada quanto necessária – um reino próspero e súbditos contentes – e da promessa de uma existência feliz e de um mundo melhor. Verdadeiro jogo de ilusões que nos remete seguramente para o plano da modernização do habitar e do viver quotidianos do pós-guerra, nomedamente para a casa idílica bafejada pelo progresso tecnológico das aparelhagens, dos equipamentos sofisticados e da energia solar de Stereatronic house of future may derive energy from sun. Algo a que hoje pode corresponder o fascínio da invenção prozac e a sedução exercida por um turismo de distracções em ecrã digital, caseiro, mas sabiamente impregnado de viagens irrealizáveis e aventuras encenadas.
Footnotes
- ^ Os textos a itálico são citados do jogo de estratégia Civilization II.