Texto «O que mudou?: Das casas-ateliers aos estúdios do século XXI», publicado na revista Arq./a – Revista de Arquitectura e Arte, n. 117, Março-Abril 2015, pp. 124-127. ISSN: 1647-077X
A questão do habitar é sem dúvida a base da prática da arquitectura, mas também um tema recorrente de trabalho na trajectória de muitos artistas portugueses, como Patrícia Garrido, Carlos Bunga, Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Ana Vieira, Ângela Ferreira, Nuno Cera, Pedro Barateiro, Didier Faustino, Nuno Sousa Vieira ou João Serra, para citar apenas alguns exemplos. Nos últimos anos têm surgido, de resto, muitas propostas curatoriais organizadas em torno dessa ideia, seleccionando peças de colecções institucionais ou desencadeando novas produções. Neste texto interessa-me contudo fazer um exercício de transposição da ideia do habitar para os espaços de vida e de trabalho dos artistas, focando os ateliers e estúdios, cuja configuração e natureza, tal como as casas, não deixa de acompanhar e espelhar diferentes conceitos de vida e de arte.
A proximidade entre o interior doméstico e os ateliers foi muito estreita durante os séculos XIX e XX, quando os artistas conciliavam funcionalidades num mesmo espaço. Em Lisboa temos o exemplo da casa-atelier de José Malhoa, hoje Casa-Museu Anastácio Gonçalves, que alberga a colecção de arte do coleccionador, mas que foi mandada construir no princípio do século XX pelo pintor naturalista para servir de habitação e espaço de trabalho. Projectada pelo arquitecto Norte Júnior nos anos 1904 – 1905, ser-lhe-ia atribuído o Prémio Valmor em 1905, encontrando-se hoje aberta ao público. Um excelente exemplo desses espaços é igualmente a Casa-Estúdio Carlos Relvas, na Golegã, atelier dedicado à prática fotográfica, inaugurado em 1876, com todo o tipo de mobiliário e acessórios fotográficos e um sistema de vidraça e cortinas movidas por cordas e roldanas que permitiam ao fotógrafo controlar a entrada de luz.
Hoje, a tendência é para um afastamento em relação a esse ideal de fusão das dimensões pessoal e profissional; a actividade artística prescindiu, pelo menos no seu espaço de realização, dessa intimidade com a vida, e de uma inspiração nascida da partilha dos espaços. Ela passou a privilegiar métodos de produção artística mais industrializada, especializada e transdisciplinar, a qual exige outro tipo de lugares, não já com a dimensão quase mitológica que o atelier adquiriu, por exemplo, no Romantismo. Para elucidar esta história, nada como convocar o testemunho das imagens: são muitos os artistas que na sua obra nos deixaram testemunho dos seus espaços de trabalho.
Antes da época romântica, Velázquez representou-o em Las Meninas (1656), mas encontramos mais representações destes espaços sobretudo a partir do século XIX, quando se afirma a singularidade e o estatuto do artista, conferindo-se maior importância ao sujeito, aos traços da sua personalidade e aos seus contextos de vida. Neste período os ateliers ganham presença sobretudo como espaços de refúgio, lugares especiais e únicos que superam as qualidades materiais do próprio espaço físico. Georg Friedrich Kersting representou o seu amigo — Caspar David Friedrich in seinem Atelier (Berliner Bild), c. 1812 — num espaço despojado, austero e próximo da cela monástica, que em si é revelador de um conceito de arte. Anos mais tarde também Gustave Courbet pintará “L’Atelier du peintre” com o subtítulo Allégorie Réelle déterminant une phase de sept années de ma vie artistique (et morale) (1855), uma peça em que retratou dois mundos, a vida material e o mundo intelectual, realizada numa tela de grande dimensão que foi recusada pelo júri do Salon, o qual alegou como argumento para a sua exclusão o tamanho da obra, demasiado grande para o tema retratado. É que de acordo com as convenções académicas, as telas de grande dimensão deveriam representar temas históricos, bíblicos, mitológicos e alegóricos, nunca mundanos. E terá sido este o principal motivo que levou Courbet a mostrar esta e outras quarenta e três das suas telas numa exposição privada que realizou por iniciativa própria, o Pavillon du Réalisme, junto da Exposição Universal de 1855.
Testemunho do grupo e do movimento impressionista é a obra que representa o atelier de Frédéric Bazille – L'atelier de Bazille – realizada pelo pintor em 1870, e que nos situa perante uma cena colectiva no atelier do n° 9 da rue de La Condamine, que o autor partilhou com Renoir entre 1868 e 1870. Na peça, além de Bazille e Manet, parecem surgir representados Monet e Renoir. A par de incluir figuras do movimento ou determinantes para o seu aparecimento, a representação do espaço serviu ainda para Bazille expressar a sua visão crítica em relação ao sistema académico, expondo algumas das peças que haviam sido recusadas naqueles anos pelo júri do Salon.
Para a história da representação dos espaços de trabalho dos artistas impressionistas figura ainda o curioso Barco-Atelier de Claude Monet, que o artista representou em 1874 – Le bateau-atelier –, ilustrando a experiência dos pintores do ar livre a trabalhar na estreita proximidade da natureza segundo a nova concepção artística do movimento impressionista. Deste mesmo atelier flutuante existe ainda o retrato Claude Monet et sa femme dans son studio flottant (1874), que Edouard Manet pintou do artista e da sua mulher Camille a trabalhar e a navegar nas margens do rio Sena, perto dos arredores de Aubervilliers.
Relativamente ao período das vanguardas históricas, sabemos que Marcel Duchamp usava o seu atelier, que era o espaço onde habitava, como local de exposição das suas obras para os seus amigos e conhecido; foi nele que expôs pela primeira vez os seus ready-made. Muito conhecidas são também as imagens de Picasso no seu atelier, rodeado de esculturas não ocidentais. Nalguns casos, o atelier será a extensão do trabalho do artista, como em Mondrian, para quem a atenção à forma pura revelava-se igualmente no atelier, onde não existiam objetos pessoais nem quaisquer marcas biográficas. Nas imagens que registavam o seu estúdio no número 26 da rue du Départ em Paris, nomeadamente as de 1926, vemos um espaço limpo, com uma pequena tela no cavalete e um livro sobre a secretária, dando expressão à dimensão abstracta e intelectual da sua obra.
Testemunho de outros espaços associados à produção artística, mas neste caso orientados para a prática fotográfica de âmbito jornalístico, é o curioso local de trabalho do fotógrafo americano Weege, que, conforme regista a imagem Weegee at his typewriter in the trunk of his 1938 'Chevy,' (c. 1943) tinha na parte traseira do seu carro um escritório, equipado com máquina de escrever, sistema rádio portátil de curta distância e câmara escura para imprimir as fotografias que vendia aos jornais e nas quais trabalhava à noite, competindo com a polícia para ser o primeiro a chegar às cenas dos crimes.
Nos anos 1950, Pollock foi fotografado e filmado por Hans Namuth e Paul Falkenberg e esses registos visuais tornaram-se icónicos. Uma selecção das fotografias de Namuth ilustraram o artigo “Polock Paints a Picture” de Robert Goodnough, publicado na revista ARTnews de maio de 1951, e divulgaram amplamente o processo pictórico e o método de trabalho directo do artista, com a tela no chão. Estes registos são ainda hoje importantes para os especialistas entenderem melhor o seu processo de trabalho e permaneceram após tantos anos como a imagem mítica do artista moderno.
Como ocorre com Pollock, dificilmente entenderíamos a obra de Francis Bacon sem conhecimento do espaço e contexto onde trabalhava. Registos fotográficos como o de 1959, feito por Cecil Beaton, mostram-nos o artista rodeado pela acumulação de materiais que lhe serviam de inspiração, numa imagem muito distante da austeridade de outros tempos. Na mesma linha de acumulação e de caos, situa-se ainda o espaço-estúdio de James Rosenquist em Nova Iorque, registado em 1964 por Ugo Mulas.
Já no início nos anos 80, em contraste à anterior escala doméstica da maioria dos ateliers, Andy Warhol desenvolveu na sua Factory, um método de trabalho designado Art Fabrication, vocacionado para modelos de produção industrializados; ele foi seguido por artistas mais contemporâneos como Jeff Koons, em cujo estúdio nova-iorquino trabalham actualmente 128 pessoas, distribuídas por diferentes departamentos; o de pintura integra uma equipa de 64 pessoas, o de escultura 44, o digital 10 e o administrativo outras 10.
Outro modelo de atelier contemporâneo é o estúdio transdisciplinar. Um exemplo é o de Olafur Eliasson, o Studio Olafur Eliasson, criado em 1995 em Berlim. Trata-se de uma estrutura composta em permanência por cerca de noventa pessoas, envolvidas na concepção e produção de obras de arte, exposições e projectos arquitetónicos. A equipa conta com artesãos e técnicos especializados, arquitectos, arquivistas e historiadores de arte, designers gráficos e de web, cineastas e pessoal administrativo. Além deste grupo de colaboradores, Eliasson desenvolve ainda relações pontuais de trabalho com uma rede de engenheiros, cientistas (da área das neurociências, por exemplo), académicos da área da filosofia, artistas, coreógrafos e especialistas de múltiplas práticas e áreas do conhecimento, do mundo científico, da arte e da cultura, dispersos por todo o mundo.
O resultado deste cruzamento de saberes e experiências está bem patente nas obras e instalações que Eliasson concebe, de grande exigência científica e técnica, com meios logísticos impressionantes, que podemos testemunhar nas grandes exposições que organiza, como as que envolvem experiências espaciais e sensoriais com campos de cor e jogos de ilusão com recurso a superfícies de vidro e espelhadas, patente por exemplo na sua primeira individual em Berlim, Innen Stadt Aussen (Inner City Out) realizada no Martin-Gropius-Bau, em 2010.
Na sua trajectória destaca-se também a idealização de alguns projectos arquitectónicos, os quais ligam o seu estúdio a ateliers de arquitetura. Em 2007, assinou com Kjetil Thorsen o pavilhão temporário da Serpentine Gallery e em 2011 finalizou o ARoS Aarhus Kunstmuseum na Dinamarca, em colaboração com a equipa dinamarquesa de arquitectos Schmidt Hammer Lassen. Desse ano data ainda a construção do projecto arquitetónico do Harpa Concert Hall, que venceria o Prémio Mies van der Rohe em 2013. O Harpa, onde reside a Orquestra Sinfónica Islandesa, é um espaço dedicado à música localizado em Reiquejavique, fruto do trabalho de Eliasson com as equipas Henning Larsen Architects e Batteríid Architects.
Estúdios como este representam também linhas de trabalho que não se esgotam na idealização e realização de obras artísticas e arquitetónicas, respondendo também à necessidade de assegurar diversas competências e escalas com que se produz hoje arte: estudo, concepção, produção (orçamentos, negociação e angariação de apoios), montagem, embalagem, armazenamento, transporte, documentação, divulgação, exposição e venda da obra.
As mudanças são tantas em relação aos ateliers dos séculos XIX e XX, que não deixaria de destacar uma outra tendência mais actual, a da ligação dos artistas ao trabalho de investigação e a associação dos estúdios de arte, design e arquitetura a institutos e unidades de investigação, na proximidade das competências antes centralizadas no mundo da Academia. O estúdio de Eliasson é também nesse sentido um bom exemplo dessa prática. Com a preocupação de promover acções de reflexão artística e divulgação abrangente, o estúdio organiza e acolhe regularmente workshops e eventos que envolvem intercâmbios entre profissionais e agentes de várias disciplinas e áreas de actuação, pessoas e instituições de dentro e fora do mundo da arte. O objectivo é produzir o envolvimento dos campos de produção artística/cultural e académica/universitária com o público em geral, na interpretação e reflexão das práticas artísticas contemporâneas. Nesse espírito Eliasson desenvolveu, com Eric Ellingsen e Christina Werner, um projecto educativo de pesquisa, o Institut für Raumexperimente (Instituto de Experiências Espaciais), filiado na Escola de Belas Artes da Universidade de Berlim (UdK – Universität der Künste) mas a funcionar no próprio edifício do estúdio de Eliasson, de modo a criar sinergias e dinâmicas de investigação e criação entre estruturas complementares. A escola funcionou durante cinco anos, de 2009 a 2014, e pode bem ser a marca mais distintiva da nova realidade dos ateliers do século XXI.