Texto «Usos e recursos da arte contemporânea: Instalações fabris, economia e estética do abandono na era pós-industrial», publicado na revista arq./a – Revista de Arquitectura e Arte, n. 112, Março-Abril 2014, pp. 122-125. ISSN: 1647-077X
O uso de edifícios, fábricas, armazéns em estado de abandono, desocupados, devolutos, improdutivos, degradados, tornados obsoletos no período pós-industrial, marcou a realização de exposições e desenvolvimento de práticas artísticas que fazem eco de concepções estéticas e das condições espaciais em que se integram, espaços em ruínas que tornam possível a experimentação de condições de instalação espacial e a criação de obras e instalações específicas.
A partir da década de sessenta do século XX foram muitas as exposições e os espaços culturais que ocuparam um vasto património imobiliário em processo de degradação, que podia ser cedido aos artistas por entidades municipais e privados a troco de rendas baratas. Esta foi de resto uma das principais características da primeira geração de estruturas independentes, surgidas em Londres e Nova Iorque. Em St. Catherine’s Dock, Londres, os armazéns vazios das antigas docas da margem sul do Tâmisa ofereceram uma solução para a falta de espaços sentida pelos artistas. Assim surgiram o Space (1968-1978) criado por Bridget Riley, Peter Sedgley e Peter Townsend em 1968 ou o Acme Studios formado por Jonathan Harvey e David Panton, em 1972. Em Nova Iorque, em 1971, Alanna Heiss criou o The Institute for Art and Urban Resources, uma organização sem fins lucrativos, cujo objectivo era encontrar espaços urbanos vagos e transformá-los em estúdios e locais de exposição para a comunidade artística. Antes de se estabelecer numa escola pública desactivada em Queens, em 1976, o Instituto tinha ocupado uma antiga oficina no SoHo, na 10 Bleeker Street, e criou depois a Clocktower Gallery nos andares superiores de um edifício de escritórios perto de Canal Street e ocupou uma fábrica abandonada em Coney Island, nas margens do Canal Cropsey (Coney Island Factory).
A apropriação destas estruturas, determinada pelo contexto de pós-industrialização e pela situação económica da comunidade artística, com poucos recursos e capacidade de investimento financeiro para a sua recuperação, teve um significado político, de criação de alternativas à concepção fechada de «lugares da arte» e paralelamente estético, na medida em que os evidentes sinais de degradação e o abandono dos seus ambientes escuros e crus, vieram a revelar-se uma constante fonte de inspiração para os artistas que souberam integrar as características arquitectónicas gerais dos espaços, o chão, as paredes, os tectos nos seus trabalhos. Os locais onde algumas destas exposições se realizaram também ofereceram outras possibilidades de expandir os limites de utilização do espaço, reforçando-se a performatividade e a informalidade através da atmosfera propiciada pelos contextos de exposição. Na medida em que as salas e espaços integram-se em construções antigas que não foram usadas durante largos anos, nem sujeitas a obras de recuperação e de manutenção, os ambientes permaneceriam degradados, com pavimentos sujos, marcas de humidade e de infiltrações que transmitiam uma intensa impressão de decadência. Não sendo espaços anónimos e abstratos, estes foram aspectos decisivos que contribuíram para a maior informalidade do resultado.
Em 1976, Brian O’ Doherty, na terceira parte do conjunto de artigos que escreveu para a Artforum[1], refere a noção do «contexto como conteúdo», explicando que estas práticas artísticas visavam expor o contexto espacial e institucional da obra de arte, em vez de um objecto autónomo. Por exemplo, para Gordon Matta-Clark o interesse em intervenções em estruturas em ruínas, com a utilização da parede e do chão, assim como o uso de materiais precários e perecíveis, tornou-se uma forma de integrar o espaço envolvente e preservar a relação entre o trabalho e o seu local de produção.
Também no âmbito da primeira exposição organizada no P.S.1 intitulada Rooms, que teve lugar nas salas de aula em ruínas da velha escola pública e onde participaram entre outros, Richard Serra e Walter De Maria, Nancy Foote referia em «The Apotheosis of Crummy Space» (1976)[2], que como outras exposições realizadas em espaços independentes, esta produzia uma «aura de autenticidade», já que não mascarava a realidade, a natureza decadente dos espaços. De resto, Foote atribui essa característica ao facto de os artistas trabalharem num regime estético instalativo site-specific, respeitando a atmosfera estética muitas vezes decadente que encontram nesses espaços.
Em Portugal, este movimento decorreu com a realização de exposições em espaços que estavam associados a diferentes funcionalidades, industriais, comerciais, ou habitacionais, que foram reutilizados para uma nova função. Refira-se a exposição Espetáculo, Exílio, Deriva, Disseminação. Um projecto em torno de Guy Debord, que decorreu nas instalações duma antiga fábrica desactivada, a Metalúrgica Alentejana, em Beja, em 1995. No seu texto de catálogo, Jorge Castanho, director da Galeria dos Escudeiros, de Beja, e comissário do projecto, encorajava os artistas a trabalhar a partir do espaço, e atendendo às condições físicas e espaciais do ambiente expositivo e ao contexto económico e sociológico:
«(...) ao apresentarem os seus projectos nas antigas instalações da metalúrgica alentejana (os artistas) não serão alheios ao efeito escabrosamente espetacular que uma Fábrica abandonada proporciona, sobretudo quando encerrou as suas portas em pleno potencial de funcionamento e que, ao encerrar, enviou para o desemprego dezenas de trabalhadores, numa Região em processo acelerado de desertificação humana.»[3]
A identidade do edifício, a sua história e ambiente, as marcas de um período da história industrial nacional, da passagem do Estado Novo para o período democrático e pós-revolucionário, até à falência de um projecto fabril, são assim material de trabalho para os artistas. A obra de Fernando Brito Sem título (1994), expunha um trator imóvel a funcionar, com as rodas anteriores em movimento mas levantadas, com isso destacando a imobilidade e o desacerto da industrialização do mundo agrícola em Portugal. Em Operários da Metalúrgica Alentejana (1994/1995), Paulo Mendes trabalha com cinco antigos operários, apresentando uma instalação composta por fotografias e registos sonoros de entrevistas que documentam a sua experiência de cinco antigos operários que foram instaladas individualmente em várias salas já desactivadas da fábrica, acompanhadas de registos sonoros com entrevistas que testemunham a sua visão e experiência no decorrer do antigo regime. Expõe ainda intervenções como O Quarto dos Sons (1995), uma instalação sonora e de cartazes realizada nas oficinas da Metalúrgica Alentejana.
Realizaram-se ainda exposições em espaços industriais e comerciais em processo de abandono, algumas delas comissariadas e organizadas por outros agentes culturais. Podemos referir alguns exemplos, como Mais do que ver – III Jornadas de Arte Contemporânea’ 96, que decorreu no Antigo Edifício das Moagens Harmonia/Museu da Ciência e Indústria, em 1996, com comissariado de João Fernandes. A exposição X-Rated (1997), ocorrida na Antiga Loja de Móveis Casa Olaio, na Rua Atalaia, nºs 36-40 e o Festival Atlântico 1999 que ocupou vários locais no centro de Lisboa, o Edifício Novo Figurino, as Galerias Garrett, e também a Galeria Zé dos Bois. Em O Império Contra-Ataca (1998), curadoria de Pedro Cabral Santo e Carlos Roque na ZDB, Patrícia Garrido desenvolve uma intervenção que é bem representativa da forma como os artistas se relacionaram intensamente com os diferentes espaços e contextos em que expõem. Nessa participação, Patrícia Garrido resolve dar continuidade à sua série de «apartamentos-tipo» – T0, T1, T2, T4, T6 (1997/1998), na qual representa estes modelos à escala 1/1, de acordo com o manual de arquitetura Neufert e seguindo a planta das casas em que viveu. Ora, se em T4, na Sala do Veado no Museu de História Natural, Garrido usara betão, e em T1 na Capela da Casa de Serralves madeira, mosaico e linóleo, ou em T6 no Teatro de S. João, no Porto, utilizara uma alcatifa azul dispendiosa, coincidente com o espaço envolvente, em T2, exposta na ZDB, ela escolhe uma alcatifa industrial mais barata, adequando-a a uma estética mais pobre.
Ainda em 1998, o Projecto Tabaqueira decorre no Antigo Edifício da Tabaqueira, estrutura industrial onde se produziram cigarros das marcas «Três Vintes», «High Life», «Português Suave» e «SG», que ocupou um pavilhão oitocentista, desativado em 1963, situado no Braço de Prata; e Anatomias Contemporâneas: O Corpo na Arte Portuguesa dos Anos 90, comissariada por Paulo Cunha e Silva e Paulo Mendes no Hangar K7, na antiga nave industrial onde foi produzido armamento para a guerra colonial no complexo industrial da Fundição de Oeiras, em 1997. Neste mesmo espaço, Pedro Lapa comissaria More Works About Buildings and Food em 2000, uma mostra interdisciplinar que congregou um conjunto de artistas de diferentes nacionalidades e cruzou arte e arquitectura, centrando a sua relação não numa perspectiva formal mas de produção de espaço social, com trabalhos artísticos baseados na dimensão vivencial da experiência e no uso e participação do público. Em 2004, Paulo Mendes realiza neste edifício OFF.SITE um projecto transdisciplinar que tinha como cenário a realização em Portugal do Campeonato Europeu de Futebol – Euro 2004, no qual colaboraram o A.S*, Atelier de Santos, com uma estrutura arquitectónica, palco onde se desenrolou a intervenção coreografada por Miguel Pereira, apresentada por intérpretes vestidos por Miguel Flor. Em 2005, a associação Plano 21 formou o projecto Terminal no mesmo hangar, com duas grandes exposições – Em Fratura. Colisão de Territórios e Toxic. O Discurso do Excesso[4]. Em 2001, Paulo Mendes realizara Urbanlab. Bienal da Maia, mostra colectiva que decorreu em três espaços da cidade da Maia, nomeadamente na antiga fábrica FIMAI, no Fórum da Maia e no Centro Comercial Venepor, com uma programação de artes visuais, música, actividades performativas, cinema e conferências. Mais recentemente, em 2013, teve lugar em Guimarães, um vasto programa de Arte e Arquitectura, no âmbito do Programa da Capital Europeia da Cultura, que decorreu nas antigas instalações da Fábrica Asa, e cujas propostas curatoriais tiveram em conta a antiga identidade do lugar, uma unidade fabril dos anos sessenta, de referência na região do Vale do Ave, cujo encerramento não pode ser dissociado da crise industrial.
Significativo é que se as ocupações destes espaços foram soluções inicialmente desenvolvidas por razões económicas, elas revelaram-se fundamentais não apenas para o surgimento de novos espaços e novas estéticas no campo da arte como para tornar evidentes as transformações e a falência da sociedade industrial no século XX.
Footnotes
- ^ «Inside the White Cube: Context as Content», Artforum, Vol. 15, n. 3 (Novembro de 1976), p. 38-44.
- ^ Nancy Foote, «The Apotheosis of Crummy Space», Artforum, vol. 15, October 1976, pp. 26-36.
- ^ Jorge Castanho, «Introdução» in Vidal, Carlos (ed.), Espetáculo, Disseminação, Deriva, Exílio: Um projecto em torno de Guy Debord. Beja: Galeria dos Escudeiros e Câmara Municipal de Beja, p. 8.
- ^ Este projecto nasceu no âmbito da associação Plano 21 – Paulo Mendes (artista plástico e comissário de exposições), Sandra Vieira Jürgens (historiadora e crítica de arte) e Inês Moreira (arquitecta e investigadora) – e foi co-organizado com a Câmara Municipal de Oeiras.