Texto publicado no catálogo Salão Olímpico 2003/2006 (pp. 63-79 PT); 81-100 EN) da exposição Busca Pólos. Porto: Fundação de Serralves/Centro Cultural Vila Flor. ISBN: 978-972-739-172-1
Conceito da exposição: Carla Filipe, Eduardo Matos, Isabel Ribeiro, Renato Ferrão e Rui Ribeiro. Locais e datas: Centro Cultural Vila Flor, Guimarães, 23.09. – 16.12.2006; Pavilhão Centro de Portugal, Coimbra, 21.10.2006 – 07.01.2007
ESTUDO DE CASO
O n. 257 da Rua Miguel Bombarda, no Porto, tornou-se o centro de um projecto alternativo dedicado às artes plásticas, que funcionou ao longo de dois anos, de 2003 a 2005, no salão de bilhares da cave do Café Salão Olímpico. A ideia partiu de um grupo de cinco pessoas — Carla Filipe, Eduardo Matos, Isabel Ribeiro, Renato Ferrão e Rui Ribeiro (maioritariamente artistas oriundos da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto) — que teve o objectivo de realizar exposições periódicas de artes visuais e outros eventos, como mostras de vídeo e performance.
Sendo o objectivo deste artigo analisar as características deste projecto e as ideias que estiveram na base da realização do Salão Olímpico, começaria por sublinhar as intenções que foram expressas no primeiro texto de apresentação do projecto.
Nesse texto fica desde logo expressa a vontade dos organizadores de constituírem um espaço dedicado às artes visuais num modelo de actuação informal e independente que fosse o resultado da iniciativa, bem como da acção, dos próprios artistas.
«O Salão Olímpico é um projecto de Artes Plásticas informal e independente, gerido por artistas, na sua maioria, oriundos da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.»
Partindo da sua afirmação, cabe destacar os princípios de intervenção deste grupo de artistas no lançamento deste projecto que se caracteriza por modos de funcionamento que divergem das normas, dos hábitos institucionalizados pelas entidades normalmente responsáveis pela sua realização no campo da produção cultural.
Nesta perspectiva, podemos referir, em primeiro lugar, a deslocação da sua esfera de actuação do pólo da criação e produção artística para o da apresentação e exibição do fenómeno artístico. Ou seja, paralelamente à sua prática artística e em detrimento da especialização de tarefas, o próprio artista assume o papel de organizador de um projecto dedicado à divulgação de propostas artísticas, torna-se produtor das exposições e o seu campo de actividade passa a definir-se pela polivalência de funções, as quais são habitualmente da responsabilidade de outros agentes do meio artístico. A sua intervenção consiste no delineamento de estratégias de produção; na gestão do espaço; definição e concepção de uma programação expositiva; na escolha de um equipe de participantes e colaboradores na realização de cada iniciativa; na colaboração na montagem das peças em exposição; na gestão do diálogo entre todos os intervenientes; na responsabilização pela produção e concepção do material informativo, bem como a sua divulgação no espaço público.
É neste sentido que convém sublinhar o desejo de construir um projecto cuja gestão organizativa das exposições, assim como a definição das propostas expositivas e artísticas a apresentar, não esteja alicerçada nos parâmetros em que habitualmente decorre a exibição e a recepção do fenómeno artístico. Naturalmente, esta situação vem alterar a relação tradicional separadora de funções da tradição artística, já que deixa de existir uma fronteira entre actividades e competências, e o artista — prescindindo do apoio institucional e do factor de mediação exercido pelas instituições e agentes dos circuitos convencionais de exibição e circulação do trabalho artístico — associa a sua actividade ao lançamento de projectos expositivos e de espaços culturais onde poderá constituir um canal alternativo, paralelo, de exibição e divulgação de propostas artísticas.
Nesta perspectiva, é possível ver estabelecida a defesa de um princípio de autonomia dos artistas em relação a interferências externas ou à visão instituída e normativa que prevalece no campo da produção cultural, segundo a qual o valor das obras de arte e a reputação dos artistas são determinadas no tecido cultural por especialistas, conservadores de museus, comissários de exposição, críticos de arte, directores de centros de arte, passando por um itinerário obrigatório. Os artistas são convidados a expor em exposições pelos especialistas ou a trabalhar em galerias inserindo-se na esfera do mercado de arte, sendo com base num processo de selecção que se opera a construção do valor das obras e o estabelecimento de uma hierarquia de reputação do artista.
Contrariamente a esta realidade, a proposta do Salão Olímpico requer a intervenção dos artistas que devem assim operar mais activamente em outros sectores do campo artístico, de modo a fomentar e consolidar por um lado, a liberdade absoluta dos criadores para decidir quando expor e por outro, e a sua iniciativa no esforço de democratização e dinamização dos canais da produção e recepção artística.
Com independência face ao círculo fechado do estabelecido mundo da arte, do sistema dos museus e do mercado da arte, visa-se a construção de um espaço gerido por artistas, sobretudo, a partir de dinâmicas colectivas de trabalho, assente em processos participativos, de colaboração e de encontro que possibilitem e desencadeiem a existência de uma acção e de um programa que seja reflexo de um modo de agir informal, que não decorra de iniciativas institucionais, de modos normativos de actuar, de formalidades e circunstâncias externas, mas de uma vontade colectiva e independente de processos de mediação e formalização que predominam no círculo do mundo da arte.
«O Olímpico define-se como um lugar de confluência de ideias e propostas de soluções, estéticas e plásticas, onde se esperam colaborações.»
No mesmo sentido, assinale-se a intenção de prescindir uma direcção curatorial, de uma instância de mediação, que possa ter por finalidade determinar ou definir uma linha discursiva a partir de uma posição alheia à autonomia de acção dos artistas.
«Propomos uma via paralela para realizar um conjunto de intervenções que não se colocam num plano de afirmação de curadoria nem qualquer outra veiculação discursiva exterior à acção dos artistas.»
Não deixa de estar implícita uma crítica à lógica e aos modos de funcionamento, de actuação institucional, pretendendo-se a constituição de uma via paralela que represente uma operação descentralizadora cujo contributo seja a definição de uma nova cartografia de lugares dedicados à actividade de divulgação fora do estrito mundo da instituição arte, dos canais tradicionais de circulação, de produção e difusão da prática e do discurso da cultura artística.
Dessa cartografia fazem actualmente parte muitos outros locais, os quais se localizam fisicamente extramuros, inserindo-se num fenómeno designado de espaços independentes ou alternativos por oferecer um movimento de deslocamento que estabelece uma fronteira entre dois campos — o institucional e o alternativo — e uma divisão intramuros/extramuros — dentro/fora da instituição arte. Com efeito, historicamente este fenómeno surge em resposta ao circuito fechado das galerias e das instituições, caracterizando-se pela apropriação de espaços públicos e privados — casas desabitadas, espaços fabris, locais comerciais abandonados — cuja ocupação contrariava a linha divisória entre o espaço da arte e o mundo externo (o resto da realidade). Em relação ao Salão Olímpico, esse desejo está também patente quando os seus organizadores afirmam:
«Pretende-se contudo reflectir essas intervenções na sua singularidade e pela inscrição da obra num quotidiano que existe em contaminação.»
À neutralidade e à universalidade do projecto arquitectónico, geometricamente perfeito do cubo branco, protegido e isolado do mundo exterior, da vida real e do caos do mundo contemporâneo, propõe-se a inserção e o envolvimento no espaço vivido, no ambiente quotidiano, através da escolha de lugares singulares, heterogéneos, com características muito particulares que se diferenciam dos lugares de prestígio cultural e social, exclusivos, resguardados, limpos, frescos, geometricamente perfeitos, associados ao sistema dos museus e ao mercado da arte.
Apontamentos sobre o fenómeno alternativo
Se há alguns anos era mais fácil ignorar a importância do movimento alternativo, no momento actual é impossível não reconhecer o seu protagonismo. Uma das mudanças mais significativas a que assistimos no panorama artístico dos últimos anos foi provocada pela consolidação do movimento alternativo. Actualmente, existem múltiplos espaços e iniciativas no contexto do meio artístico, tornando-se essa realidade um factor incontornável e decisivo na definição de uma nova esfera de espaços, os quais exercem uma função paralela e alternativa na divulgação da arte contemporânea. A influência e o papel que este fenómeno adquiriu — que inclui não apenas os espaços independentes, mas também associações, colectivos de artistas, as exposições e a actividade de artistas-comissários — tornam a sua referência essencial.
Entre os locais que desde a década de noventa se tornaram espaços de acolhimento dos trabalhos de artistas podem mencionar-se: ZÉ DOS BOIS (1994, Lisboa), os espaços ART ATTACK (1996, Caldas da Rainha), W.C. CONTAINER (1999-2001, Porto), CALDEIRA 213 (1999, Porto), PÊSSEGOpráSEMANA (2001, Porto), IN. TRANSIT, (2002, Porto), SALÃO OLÍMPICO (2003, Porto), MAD WOMAN IN THE ATTIC (2005, Porto), Projecto APÊNDICE (2006, Porto), e A SALA (2006, Porto).
É igualmente necessário valorizar a emergência e dinamização de grupos de intervenção artística, assim como a criação de projectos de autoria colectiva, de que são testemunho: colectivo Zoina (grupo de discussão e intervenção artística feminista, 1999), colectivo e fanzine alíngua (1999), Satélite Internacional e o colectivo Ateliers Mentol (2003); e ainda os projectos de comissariado realizados por artistas da geração de noventa, que colocaram em debate o papel dos agentes e canais de mediação.
Pelas repercussões que tiveram no meio cultural e artístico, importa salientar a actividade artística e curatorial de Paulo Mendes, Alexandre Estrela, Miguel Soares, João Fonte Santa e ainda o caso singular da formação Autores em Movimento, uma reunião coordenada por Pedro Cabral Santo, José Guerra, Paulo Carmona e Tiago Batista, aos quais se deveu a organização de Greenhouse display (Estufa Fria, 1996), Jetlag (Reitoria da Universidade de Lisboa, 1997) e X-Rated (Galeria ZDB/antiga loja de móveis Olaio, 1997).
Paulo Mendes comissariou Heaven Inc. (CAPC, 1995), Zapping Ecstasy (CAPC, 1996), Paisagem Económica Urbana (Graça Fonseca, 1997), Anatomias Contemporâneas. O Corpo na Arte Portuguesa dos Anos 90 (com Paulo Cunha e Silva, Fundição de Oeiras, 1997), A(Casos) & Materiais (CAPC, 1998-99), Projecto W.C Container (Edíficio Artes em Partes, 1999-2001) e Plano XXI-Portuguese Contemporary Art (Glasgow, 2000). Foi ainda co-autor do projecto Dr. Mabuse (1994), membro fundador e co-editor da revista Número (1998), e co-autor e coordenador do projecto Index (1998).
Pedro Cabral Santo iniciou o seu percurso curatorial com a organização de Faltam Nove para 2000, evento que decorreu na Galeria da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, em 1991, altura em que era ainda estudante de Artes Plásticas – Pintura daquela faculdade. Pedro Cabral Santo foi responsável pela apresentação de O que é Nacional é Bom (Fórum Prior do Crato/Lisboa, 1993), X-Rated (Galeria Zé dos Bois/antiga Loja Móveis Olaio, 1997), O Império Contra-Ataca (com Carlos Roque, Galeria Zé dos Bois/Rua da Barroca e Capella de L`antic Hospital de Santa Creu/Barcelona, 1998) e Espaço 1999 (1998).
Importa salientar a actividade artística e curatorial da formação Autores em Movimento, uma reunião coordenada por Pedro Cabral Santo, José Guerra, Paulo Carmona e Tiago Batista, que rejeitou de forma determinada a noção de colectivo, grupo ou movimento organizado, para definir a sua intervenção alternativa. Nesse sentido, afirmaram como linhas de actuação:
«Autores em Movimento são todos aqueles que integraram e integram os projectos em questão. São-no, desde logo, porque assumiram a sua participação de forma independente, assim como todos os riscos inerentes, incluindo o projecto, a montagem, a produção da sua própria intervenção.» (Catálogo X-Rated)
«… Convite à indagação das instâncias de legitimação que determinam o aparecimento dos discursos artísticos (privilegiando os actuais). Seja para que se entrevejam com mais propriedade e conhecimento, os mecanismos da instauração de Verdade(s) e as subsequentes adesões, alheamentos, ou o vasto friso de posições intermédias; seja para – nos casos em que as supraditas adesões não se realizem plenamente – proporcionar a conquista de espaços alternativos e a apresentação de propostas artísticas condizentes com essa alternância.» (Catálogo Jetlag)
«Outro factor, não menos importante, é o facto destes eventos ocorrerem em espaços alternativos aos normais circuitos de difusão artística.» (Catálogo X-Rated)
Com efeito, os locais para a realização e apresentação das suas propostas raramente eram os espaços institucionais. Muitas destas exposições realizaram-se na Reitoria da Universidade de Lisboa, na Sociedade Nacional de Belas Artes, na Estufa Fria, na Sala do Veado do Museu Nacional de História Natural, no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, na galeria Quadrum e Graça Fonseca.
Elementos para o debate
Se o uso de estruturas alternativas contra as instituições do sistema chegou a converter-se num dos principais métodos de trabalho dos anos 90, os fundamentos críticos destas intervenções não são características da nossa contemporaneidade. Não poderemos oferecer uma perspectiva sistemática dessa realidade, mas no contexto deste artigo mostraremos aqui alguns aspectos que ajudam a situar e a compreender a sua natureza.
Em primeiro lugar, convém relembrar que são frequentes na História da Arte momentos em que as novas gerações de artistas tecem críticas ao sistema artístico por não encontrarem nele o reconhecimento que permitiria a configuração de espaços adequados para a sua visibilidade. A arte moderna e contemporânea está, desde logo, associada à criação dos salões não-oficiais e não-institucionais do final do séc. XIX que eram geridos por um colectivo de artistas com o objectivo de aí exporem os seus trabalhos, contornando o processo de selecção e de mediação[1].
Basta também observar a produção teórica que enquadra a prática artística do século XX para se ver destacada uma crítica explícita aos espaços do museu. Em manifestos e noutros textos, os museus, caracterizados enquanto instâncias de poder e de decisão, são os mais visados por referências derrisórias[2]. Nos manifestos futuristas apelava-se à destruição dos museus[3], os artistas russos sonhavam com museus administrados por artistas[4] e os dadaístas nutriam uma firme desconfiança face a qualquer instituição que estivesse ao lado dos valores da tradição. Na tradição de permanente ruptura com práticas de gestão artística, estes documentos estabelecem a origem e os fundamentos das disposições críticas dos artistas em relação ao que pensam ser a instrumentalização da arte pelo próprio mundo da arte.
Nos anos 60, chegou-se mesmo a desencadear formas de manifesto público junto dos museus, como nas acções de Henry Flynt e Jack Smith — que, no âmbito da acção do grupo Fluxus, protestaram em 1963 frente ao The Museum of Modern Art em Nova Iorque pedindo a demolição dos museus de arte[5] —, e nas realizações da Art Workers Coalition[6], grupo de artistas que, no final dos anos 60, fez várias exigências aos museus: reformas, maiores direitos para os artistas e para as minorias étnicas e culturais, e uma tomada de posição contra a Guerra do Vietname. Contra os defensores da estética idealista, segundo os quais o museu era o local apropriado para apresentar a público as obras de arte, já que afastava o objecto do seu contexto histórico, a neo-vanguarda irá debater-se a favor da aproximação à praxis social.
Por parte dos artistas existiam muitas razões para que assim fosse. Primeiro, porque o isolamento a que eram votadas as mais significativas e revolucionárias propostas artísticas da actualidade assim o determinava; segundo, porque, para os criadores, era insustentável lidar, a cada passo, com as pressões de vária ordem, exercidas por aquelas estruturas; finalmente, porque as relações entre o mercado e os museus de arte nada tinham de transparente. Que critérios de selecção presidiam à sua política de representação? Seria a autoridade dos museus compatível com os valores e com o espírito democrático que na época moderna haviam presidido ao acto da sua expansão pública?
E é sobretudo a partir dos anos 70 que os artistas intensificam a sua intervenção crítica sobre o panorama artístico, desenvolvendo modos de produção que eram incompatíveis com o espaço do museu e manifestando-se interessados em construir uma prática artística fora de domínios que consideravam adversos à arte contemporânea mais inovadora.
Podemos acrescentar ainda a estas referências outros artistas que, no âmbito da do termo «crítica institucional», trabalharam na divulgação das condições materiais e sociais da produção, e da recepção artística. É o caso de Daniel Buren, Marcel Broodthaers, Richard Serra, Hans Häacke, Cindy Sherman, Sherrie Levine e Louise Lawler, entre outros.
Em Portugal, o panorama artístico nacional da década de 10 ficou marcado pela realização da Exposição Livre de 1911, cujo organizador era Manuel Bentes, artista que tinha deixado a Academia de Lisboa em 1905 e que, juntamente com outros sete pintores residentes em Paris, teve por objectivo «fugir aos dogmas do ensino, às imposições dos mestres e, quanto possível, às influências das escolas»[7]. Nos anos 20, realiza-se a mostra Cinco Independentes (SNBA, 1923) reunindo trabalhos de Dórdio Gomes, Alfredo Miguéis, Henrique Franco, Francisco Franco e Diogo de Macedo. A década de 30 ficaria também marcada pela organização do I Salão dos Independentes (SNBA, 1930) e pela criação da primeira galeria privada, a UP, que seria fundada pelo artista António Pedro, em 1932[8]. António Pedro também realizaria, em 1940, uma exposição com Dacosta numa casa de móveis no Chiado, a casa Repe.
Nos anos 40, realizou-se a primeira edição da Exposição Independente (Escola de Belas-Artes do Porto, 1943), organizada por um grupo de estudantes de Belas-Artes, onde se incluíam Fernando Lanhas e Nadir Afonso[9]. O texto assinado pelos organizadores explica a escolha do título e as intenções que presidiram à sua acção:
«Este título — Exposição Independente — não é um nome de acaso. Significa porta aberta para todas as correntes, tribuna acessível às variadíssimas tendências plásticas, alheia a compromissos estéticos.»[10]
Do final dos anos 40, podemos destacar as várias exposições realizadas pelo(s) movimento(s) surrealista(s) fora do quadro e espaços da arte mais institucional. Assim, a primeira exposição surrealista, organizada pelo Grupo Surrealista de Lisboa[11], realiza-se em 1949, num antigo atelier de António Pedro e António Dacosta na Travessa da Trindade; em 1952, a exposição Azevedo, Lemos, Vespeira decorre na Casa Jalco, numa loja de mobiliário e estofos. O grupo Os Surrealistas[12] organiza a I Exposição em 1949 e, no ano seguinte, a sua segunda edição, na Livraria Bibliófila.
Falar de liberalização do panorama artístico, por influência do contributo dos artistas na organização de exposições colectivas, leva-nos também a referir as iniciativas desencadeadas pelo artista e crítico de arte, Ernesto de Sousa, nos anos 60 e 70. De todas as manifestações em que esteve envolvido, deve realçar-se a exposição Alternativa Zero - Tendências Polémicas da Arte Portuguesa Contemporânea. Mostra que surge, segundo o próprio «(...) como resposta à necessidade profunda de acabar com aquele duplo isolamento, combatendo a fórmula 'salon' (e as suas falsas aparências democráticas) por uma perspectiva crítica, e uma responsabilidade totalmente assumida»[13].
Com efeito, em foco no movimento alternativo estará sempre a crescente polivalência, flexibilidade e versatilidade de papéis desempenhados pelo artista, que foi estendendo a sua actividade a um largo campo de actividades. Raymonde Moulin salienta que os artistas abarcaram a actividade teórica, passando a contribuir, à semelhança dos teóricos da arte, na produção escrita[14]. No mesmo sentido, Laurence Corbel, no artigo «Quelle critique pour l’art contemporain? Du discours sur l’art au discours de l’art»[15], refere como os artistas se apoderaram do discurso crítico, sobretudo, no quadro referencial da arte conceptual, integrando-o juntamente com o pensamento teórico no seio das suas obras, desse modo, reivindicando o papel tradicionalmente acordado à função discursiva e analítica do crítico de arte. O mesmo acontece com os comissários que ascenderam a protagonistas do campo artístico[16] ao se tornarem, consequentemente, alvos predilectos da crítica artística e dos seus pares.
Também Pierre Bourdieu, na análise que faz do campo da produção cultural, demonstra a fluidez das funções dos diferentes agentes do meio artístico, sustentando, porém, a importância do contexto em que nasce a obra de arte, que afirma ser um produto colectivo. Ou seja, a obra não depende do artista criador material do objecto, mas de um conjunto de pessoas comprometidas com o campo cultural. Os produtores da obra de arte são os artistas, mas também os críticos, os coleccionadores, os comissários, e todas as pessoas que participam na produção do valor do artista e do contexto da arte. O artista, o comissário, o professor, o administrador do centro de arte, o historiador, todos, sem excepção, são agentes comprometidos com a produção cultural e a valorização de um produto cultural.
Como apontamento para o debate, gostaríamos ainda de referir o artigo intitulado «From The Critique of Institutions to an Institution of Critique»[17] de Andrea Fraiser, autora que chega a questionar a ideia de que os artistas associados à «crítica institucional» possam ter produzido uma prática artística em oposição à instituição arte. Isto porque, na perspectiva de Fraiser, o termo «instituição» é passível de ser deslocado de um campo específico da arte para o campo mais alargado do social, advindo desse reenquadramento uma visão em que se as fronteiras do dentro/fora se tornam mais complexas. Neste contexto, a instituição arte inclui os lugares onde a arte era exposta — os museus e as galerias —, mas também as casas dos coleccionadores, o espaço público, os lugares de produção da arte, os estúdios, ateliers, escritórios e a produção de discurso (revistas, catálogos). Além disso, Fraiser defende que a instituição arte nunca poderá ser posicionada exteriormente à arte e aos artistas cuja actividade é alvo da sua intervenção, uma vez que o seu reconhecimento e a sua existência só poderão operar-se tendo como condição irredutível a instituição arte.
Ainda sobre o Salão Olímpico
Não obstante os diferentes argumentos em debate que ajudam a reflectir, sob a égide da dinâmica das oposições e das intercessões, sobre o fundamento actual das críticas à lógica e aos modos de actuação das estruturas institucionais, e sobre a possibilidade de existência de um circuito paralelo e autónomo em relação ao sistema institucional da arte, com as suas próprias regras, estruturas e recursos, é certamente devido à afirmação crescente e progressiva das iniciativas independentes que podemos ver desenhado o fim de uma política cultural homogénea, em benefício da emergência de plataformas de exibição mais flexíveis e descentralizadas, as quais continuam a dar cobertura a uma heterogeneidade de escolhas e a situações singulares, que se impõem a uma tendência estética dominante.
No que se refere ao Salão Olímpico, à primeira exposição, organizada em Março de 2003, seguiu-se uma programação regular de eventos, entre exposições, performances, conversas e discussões participadas, que integrou um significativo número de participantes: Alexandre Costa, Alexandre Osório, Alice Geirinhas, Amélia Alexandre, Ana Perez Quiroga, Ângelo Ferreira de Sousa, António Caramelo, António Lago, António Leal, António Preto, Bruno Fonseca Carla Cruz, Carla Filipe, Catarina Felgueiras, Cristina Regadas, Domingos Loureiro, Eduardo Matos, Fernanda Oliveira, Fernando Brito, Fernando José Pereira, Fernando Ribeiro, Francisco Tropa, Gustavo Sumpta, Isabel Carvalho, Isabel Ribeiro, Israel Pimenta, Joana Mateus, João Girão, João Marrucho, João Fonte Santa, João Marçal, João Sousa Cardoso, Luís Ribeiro, Manuela Campos, Manuel Santos Maia, Marco Mendes, Mariana Costa Miguel Cabral, Miguel Carneiro, Nuno Alexandre Ferreira, Nuno Ramalho, Paulo Mendes, Pedro Amaral, Pedro Barateiro, Renato Ferrão, Ruben Azevedo, Rute Pimenta, Sónia Neves, Susana Chiocca, Susete e Víctor Silva Lago.
Além disso, o Olímpico apresentou um vasto conjunto de propostas que não encontravam espaço de exibição nem nos museus nem nas galerias privadas. Por exemplo, foi muito significativo o número de mostras de artes perfomativas realizadas no Salão Olímpico e a atenção que se dedicou a esta área da criação. De resto, isso está bem patente no texto de apresentação de Quando um minuto se arrasta, uma das várias mostras de performance que se realizaram neste espaço.
«A mostra de performances denominada Quando um minuto se arrasta, que o Salão Olímpico agora apresenta, pretende tornar visível criações na área das artes performativas, possibilitando a sua realização e discussão e constata ele próprio um corpo de trabalho emergente na actual produção artística portuguesa e também a diversidade de artistas provenientes das mais diversas áreas artísticas a trabalhar nesta área.»
Assim, sem que exista a lógica comercial do mercado de arte, a pressão dos interesses económicos, o espaço do Salão Olímpico pode caracterizar-se como uma zona protegida de criatividade onde pôde decorrer a apresentação de manifestações artísticas, cuja informalidade e imaterialidade determina ainda a sua falta de legitimidade nos espaços galerísticos e museológicos.
Em atenção estarão também as diferentes manifestações e actividades, que permitiram a experiência do diálogo e de reflexão. Ao longo da sua existência desenvolveram-se muitas iniciativas onde os vários intervenientes puderam debater as próprias exposições patentes e outros temas propostos para discussão. Assim aconteceu com as conversas programadas por José Maia, que resultaram em outras formas de intervenção informal, aberta e pluridisciplinar. Nelas, como refere o seu responsável: «Os assuntos ou temas a abordar serão motivados ou propostos por convidados provenientes de várias áreas que compartilharão as suas experiências, as suas visões, as suas opiniões e nos permitirão (re)pensar, analisar e questionar o exposto. Estes momentos pretendem ser catalisadores de energias, deverão ainda ser momentos construtivos, mobilizadores.»
Por tudo o que foi referenciado, diria que falar do Salão Olímpico implica falar de artistas, exposições, de performances, de conversas numa sala invulgar, mas sobretudo de uma dinâmica de acontecimentos que incentivaram a reunião participativa e comunitária.
É também à luz da orientação cada vez mais comercial do mundo da arte que é importante sublinhar, uma vez mais, o contributo do Salão Olímpico para a realização de projectos sem repercussões no mercado da arte e sem rentabilidade imediata, cuja aposta recaiu fundamentalmente no âmbito da livre criatividade, na acção cultural e na intervenção/transformação social no seio do campo artístico.
Footnotes
- ^ Cfr. Nathalie Heinich, Le Triple jeu de l’art contemporain. Sociologie des arts plastiques. Paris: Éditions de Minuit, 1998, p. 265.
- ^ Cfr., Kynaston McShine, The Museum as Muse Artists Reflect. Nova Iorque: The Museum of Modern Art, 1999, p. 11.
- ^ Refiro-me à alínea 10 do Manifesto Futurista de Marinetti, de 20 de Fevereiro de 1909 - Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de toda a natureza (...). Cfr. «Manifesto do Futurismo» [de 20 de Fevereiro de 1919] in Aurora Fornoni Bernardini, O Futurismo Italiano. Manifestos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980, p. 34.
- ^ Cfr. Kynaston McShine, The Museum as Muse Artists Reflect. Nova Iorque: The Museum of Modern Art, 1999, p. 11.
- ^ Cfr. Tony Godfrey, Conceptual Art. Londres: Phaidon, 1998, p. 5.
- ^ Cfr. Charles Harrison e Paul Wood, Art in Theory 1900-1990: An Anthology of Changing Ideas. Oxford e Cambridge: Blackwell, 1992, p. 901.
- ^ Cfr. José-Augusto França, O Modernismo na Arte Portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1979 (1. ª ed. 1983), p. 10.
- ^ António Pedro e Dr. António Júlio Castro Fernandes na sequência da actividade da Tipografia na Travessa de André Valente criara na Rua Serpa Pinto n.os 28 e 30, no Chiado, uma livraria e galeria de arte. Cfr. Fernando Guedes, Estudos sobre Artes Plásticas. Os anos 40 em Portugal e outros estudos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 24 e 25.
- ^ Uma segunda edição, em 1944, decorreu no Ateneu Comercial do Porto-Grupo de Estudantes de Belas-Artes. Motor passa a ser Fernando Lanhas; e terceira edição, realizada em 1944 no Coliseu do Porto, e que através de um circuito de itinerância é levada a Coimbra, a Leiria e Lisboa. Cfr. Fernando Guedes, Estudos sobre Artes Plásticas. Os anos 40 em Portugal e outros estudos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 16.
- ^ Citado a partir de Fernando Guedes, op. cit., p. 41.
- ^ Grupo formado em 1947. Dele faziam parte os artistas Fernando Azevedo, Mário Cesariny, António Domingues, José-Augusto França, Alexandre O’Neill, António Pedro, João Moniz Pereira e Marcelino Vespeira.
- ^ Grupo formado em 1948, dissolve-se em 1949. Deste grupo faziam parte Artur Cruzeiro Seixas, Mário Cesariny, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira, Fernando Alves dos Santos, Pedro Oom, Carlos Eurico da Costa, Fernando José Francisco.
- ^ Cfr. Ernesto de Sousa, Alternativa Zero – Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Secretaria de Estado da Cultura, 1977, s.p. A exposição decorreu na Galeria Nacional de Arte Moderna.
- ^ Raymond Moulin, L’Artist, l’Institution et le Marché. Paris: Flammarion, 1992, op. cit., p. 212.
- ^ Laurence Corbel no artigo «Quelle critique pour l’art contemporain? Du discours sur l’art au discours de l’art». Parpaings, n. 25, Julho-Agosto-Setembro 2001, pp. 22-23.
- ^ Natahalie Heinich e Michael Pollak, «Du conservateur de musée à l’auteur d’expositions: l’invention d’une position singuliére». Sociologie du Travail, nº 1, 1989, pp. 37. Este artigo foi redigido pelos autores no contexto da associação Adresse: Vienne à Paris – portrait d’une exposition. Paris: Éditions du Centre Pompidou – BPI, 1988.
- ^ Andrea Fraser, «From the Critique of Institutions to an Institution of Critique». Artforum, Set. 2005, pp. 278-283.