Exposição: COSMO/POLÍTICA #2: Conflito e Unidade
Artistas: João Ferro Martins, Mafalda Santos e Susana Gaudêncio
Local: Museu do Neo-Realismo
Datas: 2018-05-26 – 2018-11-11
Curadoria: Sandra Vieira Jürgens e Paula Loura Batista
Dando continuidade ao ciclo expositivo de arte contemporânea COSMO/POLÍTICA e seguindo o eixo matricial do projeto – do estabelecimento de um diálogo com o legado neorrealista –, esta segunda exposição tem como ponto de partida a conferência Conflito e Unidade da Arte Contemporânea proferida por Mário Dionísio na Sociedade Nacional de Belas Artes em Dezembro de 1957, e publicada em 1958. Nesta conferência, integrada na 1ª Exposição de Artes Plásticas da Fundação Gulbenkian, Mário Dionísio interpela os presentes quanto a questões fundamentais e prementes sobre a arte e a criação estética moderna, sobre o que caracteriza como falso antagonismo entre abstracionismo e realismo, ou forma e conteúdo, e, sobre o conflito entre a arte e o público.
Surpreendentemente, ou nem tanto, algumas das interrogações de Mário Dionísio ressoam, 60 anos depois, com plena atualidade. Nesse sentido convocámos algumas problemáticas da criação artística contemporânea num diálogo que dificilmente consideramos anacrónico, quando compreendemos a intemporalidade e a importância de reavivar no Museu do Neo-Realismo o pensamento crítico sobre as práticas artísticas e as suas implicações na sociedade.
Convidámos os três artistas participantes – João Ferro Martins, Mafalda Santos e Susana Gaudêncio – a dar sequência a este debate partilhado no tempo e a refletir e problematizar os modos de representação da realidade, a função social da arte, a atualidade da noção de “arte útil” e o acolhimento da arte na sociedade, ou os contínuos encontros e desencontros entre o público e a arte contemporânea.
JOÃO FERRO MARTINS
Na série Conflito e Unidade, formada pela instalação de três peças escultóricas, João Ferro Martins aborda o tema da exposição a partir da noção de réplica e do conflito entre discursos estéticos produzidos em objetos similares. A problemática das tensões experimentadas pelos artistas modernos, nomeadamente as relações antinómicas entre o abstrato e o figurativo, entre o valor da utilidade versus o da autonomia do objeto artístico ou entre o trabalho autoral e anónimo, são exploradas na criação deste tríptico escultórico que parte de uma matriz: um objeto museográfico utilitário usado para o transporte de obras de arte no próprio Museu do Neo-Realismo. Partindo da estrutura da plataforma inferior deste carro, desenhado, construído e usado pela equipa técnica do Museu do Neo-Realismo, João Ferro Martins construiu igualmente o seu projeto artístico procurando a colaboração dos funcionários das oficinas da carpintaria municipal. Esta referência ao modo de execução do projeto é relevante, na medida em que evoca a crítica ao conceito de autoria artística já presente nesta série, realizada através da cópia parcial de um objeto funcional, e reforça o reconhecimento do trabalho oficinal comum, concretizado muitas vezes com o apoio de gente anónima. Mais do que promover uma experiência estética, em Conflito e Unidade problematiza-se acima de tudo o modo de produção da obra de arte e os processos criativos imanentes ao autor.
Conflito e Unidade I, que surge composta por uma pequena plataforma com rodas sobre a qual está pousado um amplificador de aparelhagem e duas colunas de som, adquire a qualidade de um comum estéreo e de uma instalação sonora, que evidencia a riqueza da apropriação de objetos da realidade quotidiana e o potencial colaborativo das diferentes disciplinas artísticas.Próxima desta, Conflito e Unidade II está próxima do valor da autonomia da estética minimalista pela aparência monolítica que apresenta, que não deixa de ser subvertida pela presença intencional de um elemento lumínico. Por sua vez, Conflito e Unidade III, apresentando-se idêntica às peças anteriores, foi produzida em contraplacado e possui aparentemente uma função utilitária devido à presença de um conjunto de dois tipos de copos, em equilíbrio instável, e com valores estéticos e de uso diferenciados: o copo comum (popular, essencialmente utilizado para vinho) e o copo requintado (a flute usada para champanhe).
MAFALDA SANTOS
A materialidade e a visibilidade dos objetos e o modo de perceber a sua forma e conteúdo são alguns dos pontos de partida da instalação Anhangabaú (2014) de Mafalda Santos. A instalação apresenta-nos um “muro” erigido pela sobreposição de resmas de papel impresso. Se sabemos que essas folhas contêm informação, esta permanece inacessível e encriptada, já que delas são visíveis apenas as suas múltiplas e variadas margens.
Jogando com o conceito de abstração no questionamento das infinitas possibilidades do conteúdo, e também com a fisicalidade ou tridimensionalidade do objeto e a bidimensionalidade e abstração da imagem, Mafalda Santos convoca outras reflexões e questões de interesse para a leitura do seu trabalho, como a acumulação e obsolescência inerentes ao excesso de informação que, paradoxalmente, resultam numa impossibilidade de acesso ao conhecimento. Na voragem do tempo atual, de rápida veiculação de informação tanto fidedigna como falseada, esta obra remete-nos ao questionamento sobre o conflito, real, entre a informação exponencial que recebemos e o efetivo conhecimento gerado por essa transmissão, tão imediata como efémera ou superficial. Reapropriando-a e relendo-a através da produção crítica de Mário Dionísio, o cariz formal da peça que intervém “arquitetonicamente” no espaço expositivo, criando uma barreira visual face ao conjunto das obras exibidas, não anula o seu forte pendor abstrato, cuja leitura e acesso serão tanto mais profundos quanto a aproximação e projeção que fizermos à sua inesgotável dimensão de possibilidades.
A artista apresenta ainda a obra A Força e a Forma (2018) que repercute o tema da conferência Conflito e Unidade da Arte Contemporânea de Mário Dionísio, estabelendo um diálogo entre a peça tridimensional e a pintura deste autor, À mesa à luz do petróleo (1948), selecionada para esta exposição.
SUSANA GAUDÊNCIO
A artista apresenta duas obras nesta exposição. A obra Um mundo dentro do mundo (2018) consiste numa composição de cartazes instalados em estruturas de madeira e o vídeo-animação Jogo de buracos negros e brancos (2018). Ambas evocam o texto da conferência Conflito e Unidade na Arte Contemporânea de Mário Dionísio e o Quadrado Negro de Kazimir Malevitch, apresentado em 1915 na Última Exposição Futurista 0.10.
Para estes projetos, Susana Gaudêncio colhe inspiração nesta obra e, jogando satiricamente com essa referência, articula uma narrativa crítica que se entrecruza com o fascínio que experimentou com a descrição por Sartre (no romance A Náusea) de uma obra abstrata, excerto a que Mário Dionísio recorre, na conferência de 1957, para exemplificar uma verosímil, ou hipotética, descrição de uma pintura abstrata. Ao contrário das obras suprematistas, em Um mundo dentro do mundo a artista utiliza imagens de objetos, figuras ou situações fragmentadas, formas naturais, minerais, e reproduz imagens de objetos em diferentes graus de aproximação impondo-os como realidade.
Esta interpelação é igualmente transposta para o espaço expositivo e enriquecida e complementada pelo vídeo-animação Jogo de buracos negros e brancos que expande os conceitos subjacentes.
